Terça-feira, 19 Março

Doclisboa: como um cinema cómico-erótico desafiou a ditadura no Brasil

“Pornochanchada” foi o rótulo que críticos mal-humorados atribuíram a uma certa forma de fazer cinema no Brasil nos anos 70. Esta produção logrou ser odiada por todas as tutelas do “bom gosto”: na direita o próprio governo, que detestava aquela cinema “vulgar” para as massas; para a esquerda era um cinema alienante e despolitizado. O público é que não lhes ligava nenhuma: graças a ele, foi um cinema que se sustentou sem subsídios e constitui-se num exemplo de indústria bem-sucedida.

“Histórias que nosso Cinema (não) Contava” trás uma “colagem” de trechos de vários filmes do período. O objetivo: mostrar que, muito longe das aparências, foi um cinema crítico e um espelho vibrante da sociedade do período. Visto retrospetivamente nem sempre parece um “bom” cinema: como a realizadora Fernanda Pessoa esclarece, houve coisas boas e más nas obras – o que importa é mostrar que eles foram, de facto, um retrato bastante acurado de um país na fase mais negra da sua ditadura.

Da mesma forma, estiveram bem longe de ser politicamente corretos (anos 70!) em relação às mulheres. Para a cineasta, não se trata de um machismo escancarado apenas daquela altura: continua ainda hoje. País com igualdade entre os géneros? Não lhe parece…

Fernanda Pessoa concedeu ao C7nema uma entrevista tão rica quanto o seu filme.

“Histórias que nosso Cinema (não) Contava” tem sessões no âmbito do Doclisboa nos dias 25 e 28.

Fernanda Pessoa

O filme traça uma relação muito singular entre um cinema popular que não parece de forma alguma estar afetado pelo facto de existir num período sombrio da ditadura. A política, por exemplo, aparece em vários momentos e sob perspetivas não propriamente “corretas”…

Sim, é surpreendente encontrar tantos comentários políticos nesses filmes. Existe um mito de que esses filmes não eram censurados e até de que o regime militar gostava deles, pois eram alienantes e despolitizados. Isso não é verdade. O regime militar detestava esses filmes pois achava que eles eram imorais e mostravam uma visão de Brasil vulgar e pejorativa.

Todos os filmes da chamada “pornochanchada” passaram pela censura e foram, de facto, muito censurados. A diferença é que eles sofriam uma censura moral e não política. Falamos muito sobre a censura política no Brasil e esquecemos que existia um viés moralizador e educador muito grande no regime militar. Os censores muitas vezes achavam que o público brasileiro não conseguiria refletir sozinho e se visse, por exemplo, cenas de pessoas urinando em via pública, iria repetir o feito. Já a censura política estava reservada a filmes de cineastas vindos do Cinema Novo, de esquerda.

Além disso, a censura era muito personalizada, tudo dependia do encarregado da análise de cada filme. E, caso um filme fosse totalmente proibido, era possível entrar com pedidos de revisão. Dessa forma, muitos filmes que em um primeiro momento foram censurados, acabaram sendo liberados após a grande burocracia do pedido de revisão.

Sabe-se que no final dos anos 70 o regime ditatorial adquiriu um ritmo mais brando mas, de forma alguma, era o caso no início da década, época na qual vários dos filmes que citou foram realizados. Como acha que era possível um cinema que tomava tamanhas liberdades num período particularmente sombrio?

É curioso porque a “pornochanchada” é completamente contemporânea da ditadura militar: os primeiros filmes saem em 1969, ou seja, um ano após o AI-5, Ato Institucional Número 5 que marca o começo período mais duro da ditadura no Brasil, e acaba no começo dos anos 80, quase junto com a anistia e a perspetiva de uma abertura democrática. Isso foi o que mais me chamou atenção quando comecei a pesquisar o tema. Parece uma contradição muito grande que esse seja o cinema mais produzido e visto durante uma ditadura militar.

Acho que esse cinema foi possível por algumas razões. Primeiro porque os movimentos anteriores, do Cinema Novo e do Cinema Marginal, não conseguiam mais produzir, pois não conseguiam financiamento e muitos de seus realizadores foram perseguidos. Então havia um vazio cinematográfico a ser preenchido.

Em seguida, esses filmes eram feitos de forma muito independente, sem depender de financiamento do Estado. Eles realmente criaram uma pequena indústria, em que exibidores – as salas de cinema – e pequenos comerciantes acabaram virando investidores. Como os filmes tinham muita bilheteira, os produtores logo reinvestiam o lucro no próximo filme e, assim, a produção crescia. Além disso, como eu disse acima, o Estado estava mais preocupado com a censura moral desses filmes e não política.

Esses filmes, sob uma aparência de “exploitation” cómico-erótica, na verdade refletem incrivelmente a década de 70 no Brasil. Falam do êxodo rural, da questão dos patrões e empregados, das lutas dos homossexuais, da emancipação feminina e da crise econômica. Um dos filmes citados, já no final, contém uma piada que parece o espelho do que mostrou, quando um personagem, após ver um filme, diz “nunca vi tanto realismo“…

A proposta é justamente encontrar traços da história recente do país nestes filmes que são considerados despolitizados e alienados. A ideia era mostrar que, mesmo em produtos culturais improváveis, é possível descobrir e aprender algo sobre nossa história. Eu digo que o tema do filme não é a “pornochanchada”, mas sim a década de 1970 no Brasil. A “pornochanchada” é o meio, bastante incomum, que eu escolhi para contar essa história.

A ditadura também estava vinculada a um forte processo de industrialização. Os filmes refletem a evolução da sociedade de consumo que tem um ponto alto num momento quase surreal – ao som de “The Robots”, do Kraftwerk.

A ditadura esteve muito associada a um certo projeto de progresso econômico e industrial. Os anos mais duros do regime militar, os chamados “anos de chumbo”, correspondem igualmente ao período do que os militares chamaram de “milagre econômico”, um momento de grande crescimento econômico mas também de aumento de desigualdade social no país. 

Uma das grandes revelações que tive no processo de fazer o “Histórias que nosso Cinema (não) Contava” foi ver que o milagre econômico e a industrialização são um dos temas, explícitos ou não, de muitos desses filmes. Sempre há piadas e referências às grandes obras que estavam sendo feitas no momento, como a Transamazónica e a Ponte Rio-Niterói.

Além disso, como podemos ver nos primeiros 20 minutos do meu filme, o corpo feminino foi muito utilizado nesse período tanto como metáfora desse projeto de “Brasil grande e próspero” quanto como mercadoria de troca simbolizando os prazeres do tal “milagre econômico”. 

Aliás, as mulheres não são, certamente, retratadas numa ótica que, retrospetivamente, possa ser considerada “politicamente correta”. Para além da nudez, aparecem frequentemente associadas à exploração do corpo de diferentes formas.

A representação feminina é uma das grandes questões do meu filme e perpassa toda sua duração. Eu acho que esses filmes são um retrato muito fiel do machismo da sociedade brasileira. Muitas vezes pensam que o Brasil é um país bem resolvido sexualmente e com igualdade de gênero, o que não é verdade: é um país muito machista e era ainda mais nos anos 70. Nos filmes, como eu disse, existiu essa objectificação do corpo feminino muito forte e revoltante.

Num primeiro momento ele é usado como metáfora do milagre econômico e a minha abordagem foi realmente mostrar isso à exaustação, usando a repetição do assunto como recurso para deixar claro o que está em jogo ali. Existe também um subgénero que essa indústria importou da exploitation americana nesse período que se chama “WIP” (Women In Prison) – que, essencialmente, mostra mulheres encarceradas em lugares fechados sofrendo diversos tipos de abuso. No Brasil, adaptaram esse gênero na “pornochanchada” produzida na Boca do Lixo, em São Paulo, e ele teve muito sucesso comercialmente.

Por outro lado, há alguns filmes, que são a exceção dentro desse corpus fílmico, mas que existem, que retratam mulheres fortes, buscando sua independência sexual, querendo se divorciar ou mesmo realizar um aborto – algo que ainda hoje é proibido e tabu no Brasil. Uma figura bastante recorrente também é a da filha burguesa que sai de sua cidade no interior, entra em contato com os hippies e com a chamada “revolução sexual” e passa a questionar os valores da sua família tradicional.

O sexo foi um elemento muito presente no cinema dos anos 70 na Europa (países como Itália, França e até Inglaterra) e nos Estados Unidos. Acha que no Brasil esse cinema, que em parte também reagia aos “standards” do Cinema Novo, levou a receita um pouco mais longe?

A “pornochanchada” foi muito influenciada tanto pelos filmes eróticos da Itália do período, que normalmente eram compostos por três episódios (por isso muitos deles utilizam esse formato), quanto pelo cinema exploitation vindo dos Estados Unidos, como mencionei. Além de termos abrasileirado a fórmula, a grande diferença é que, enquanto esses cinemas eróticos ficavam à margem da produção hegemônica desses países, no Brasil virou o grande gênero da década de 1970.

Esses eram realmente os filmes mais vistos e mais produzidos do período no país. O cinema erótico deu muito certo no Brasil e realmente criou uma indústria, que não era vista só por homens maiores de 18 anos. No começo da década, quando os filmes ainda eram mais inocentes, ir ao cinema assistir uma “pornochanchada” era um programa de família.

Acha que esse patrimônio cinematográfico seja tão negligenciado por ter sido eminentemente popular e, por vezes, intencionalmente à margem do gosto “burguês”? Além do seu filme existem outros projetos cinematográficos e acadêmicos de resgate deste cinema?

Eu acho que em primeiro lugar tem a acusação do “mau gosto” destas obras, que é onde a esquerda e a direita encontravam razão em comum para falar mal delas. Para a crítica de esquerda, com exceção de alguns poucos como Jean-Claude Bernardet e Paulo Emílio Sales Gomes, esses filmes eram de mau gosto, despolitizados e alienantes. Para a direita e a censura eram obras amorais, prejudicavam a boa educação do povo brasileiro e mostravam uma imagem pejorativa de país.

Ninguém gostava da “pornochanchada” a não ser o público, que ia em massa ver esses filmes no cinema. Acho que também tem a ver com uma certa noção do termo “popular”. Acredito que muitas vezes temos uma noção de popular e povo bastante idealizada e estes trabalhos não condiziam com essa noção. 

Também acho importante dizer é que eu não faço uma “defesa” da “pornochanchada” –  e aí também entra a questão do nome pejorativo que os críticos deram para denominar uma série de filmes bastante heterogêneos – afetando assim a receção deles. O meu filme não é para dizer ‘olha só como esses filmes eram bons na verdade’. Eles têm coisas boas e ruins – o que eu quero mostrar é que são um retrato dessa época e revelam muitas coisas sobre os anos 70 no nosso país.

Existe mais um resgate dos filmes produzidos nessa época em São Paulo, na “Boca do Lixo”, do que propriamente deste subgénero. Me parece que os teóricos e os próprios cineastas da época ainda têm medo da palavra. Uma iniciativa de resgate desse cinema que eu acho muito importante citar é o da crítica Andrea Ormond e o seu site “Estranho Encontro”, onde ela escreve bastante sobre essa filmografia.

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