Terça-feira, 19 Março

Paul Vecchiali: “Hoje é preciso bater na política dos autores”

Paul Vecchiali é descrito como um marginal no cinema francês, mas ele próprio considera nem sequer fazer parte dos livros de História. Contudo, a História está a favor deste “Herói Independente”.

É sabido que quando Vecchiali viu Mayerling (Anatole Litvak, 1936) aclamou euforicamente no final da sessão que iria tornar-se num realizador, de forma criar experiências como aquela. E assim o concretizou. Polivalente por natureza, tendo sido também um ator e muito mais, um produtor que redefiniu e inovou os métodos produtivos do cinema francês, graças à sua segunda produtora Diagonale. O conceito nascia da frase “fazer cinema na diagonal“, uma produtora que garantia a liberdade aos seus realizadores de forma a conservar o espírito neles habitado, tendo como única regra o respeito pelo orçamento.

Um assumido admirado do cinema dos anos 30, um homem marcado pela urgência de abordar temas irreverentes e politicamente incorrectas no Cinema, os seus filmes falam por si, e sobretudo um realizador sem “papas na língua” no que refere a caraterizar o panorama atual do cinema francês, a crítica e a cada vez mais formatação da Sétima Arte. Algo que tentaria combater e que hoje parece ter saído derrotado, felizmente, a sua postura não é a de um derrotista, mas de um vencedor que acompanhou todo um percurso cinematográfico e que tanto contribuiu para sua diversidade.

O C7nema teve o privilégio de falar com Paul Vecchiali, durante a sua passagem em Lisboa.

É sabido que o Paul Vecchiali é muito crítico em relação aos guiões de hoje.

Acho muito maus, sem imaginação, bastante formatados, na maneira em que não querem surpreender o espectador. As pessoas querem falar como nos filmes que vêm, mas não compreendem nada do que se diz. Ou é “sorry“, “I’m sorry“, “very sorry” ou “fuck” e tudo derivado disso. A televisão anda a mudar bastante o cinema e a formatação é quase obrigatória. Onde está o cinema?

La Machine (1977)

Em relação a sua carreira como produtor tentou de certa forma evitar essa formatação no cinema?

Uma vez perguntaram-me se eu era um realizador marginal. E eu respondi “Meu caro, a única coisa marginal que tenho é o facto de nem sequer entrar nas páginas”. (Risos) Eu fiz parte do sistema de um ponto de vista técnico, mas não de um ponto de vista moral. Muitos realizadores franceses pensam que são deuses. Eu vejo isto como uma família, um grupo a quem digo “Faz o teu trabalho o melhor possível” e tentamos fazer o melhor filme possível. Escrevo um argumento, chamo o diretor de fotografia, o engenheiro de som e falamos. Há um filme que fiz e que acho magnífico que é o L’Étrangleur porque resultou de uma concentração enorme de imaginários e de talentos. Mas depois há filmes que são aclamados, como A Vida de Adèle, aquela monstruosidade, que foi considerado um dos melhores filmes do ano pela Cahiers du Cinèma e me fez dizer logo “Não quero mais saber deste cineasta”.

Poderia comentar a frase que disse numa entrevista “O único produtor francês na atualidade sou eu”?

Eu sou um produtor normal, não sou marginal. Não sei se sou um bom realizador, mas sei que sou um excelente gestor. Falo com cada membro e pergunto a altura ideal para fazer determinada cena. Por exemplo, quando é uma cena no exterior explico o meu plano ao diretor de fotografia e pergunto-lhe “Quando é que devo filmar?”. E ele diz-me “devemos fazer a cena às 17 horas…. Devemos fazê-la de manhã”. E eu escuto-o. Até porque um filme não se faz na rodagem, faz-se antes, na pré-produção.

Sempre foi visto como um autor provocador pela abordagem dos seus filmes em temas, já por si pertinentes, como a homossexualidade, a SIDA e até mesmo a pedofilia e a pornografia…

Não me considero um provocador. Quando tenho questões que preciso de ver respondidas e quero saber como lidar com certos temas digo “Que posso fazer?” e assim nasce um filme. Não é uma provocação.

Estive anos a pensar num filme sobre a pena de morte e um dia tive a ideia de fazer com texto improvisado [La Machine]. É verdade que muitas pessoas defensoras da pena de morte recusaram-se a ver o meu filme, acharam ridículo, mas disse-lhes “Eu é que vos acho ridículos.”. Eles simplesmente usavam argumentos de que os atores improvisavam os textos. Só escrevi uma coisa nesse filme que foi a personagem do psiquiatra e isso diz muito sobre o meu método de trabalho.

Sobre a homossexualidade, não aceito o nome “homossexual”. Aceito o adjetivo “homossexual”. Porque para mim não existe “o homossexual”, acho grosseiro. Quando fiz esse filme [Encore], atacaram-me e perguntaram-me se me masturbava a pensar em homens ou em mulheres. Quando nascemos temos todas as possibilidades… há a educação, há os sítios que frequentamos, há a orientação que se forma a pouco e pouco, mas não é um quadro simples. Na minha opinião, quanto mais homofóbicos são os homens, mais problemas têm em assumir o próprio desejo homossexual.

Encore (1988)

Quando se fala hoje do cinema francês há um grande foco de começar a partir dos anos 60, quase excluindo os anos 30, o qual Vecchiali é um grande defensor.

Para mim, o cinema francês dos anos 60 foi uma mistura do cinema dos anos 30 e da Nouvelle Vague. Farto-me de dizer que tinha a cabeça do segundo, mas o coração do primeiro. Porque a Nouvelle Vague foi isso mesmo: a cerebralidade, enquanto os anos 30 foram a escritura fílmica. É o que permite distinguir Jacques Audiard de mim. As imagens são aquilo a que se chama na matemática de “integral”, não é uma soma elementar, é o trajeto que vai um ponto ao outro, uma sequência. Um filme é como um rio, quando está na montanha é o que se chama a “pré-produção”. Desce e chega ao mar, que é o público. Quanto mais vigoroso for o rio, mais heterogénico ele é. E esta heterogeneidade é a vida. Há cineastas que tentam exprimir a vida de uma maneira falsa e a isso chamamos “homogeneidade”, uma vida idealizada. E todos os meus filmes são heterogéneos.

O discurso atual é fazer uma escritura fílmica, pensar o filme… e o que os meus dizem é “Estou-me a borrifar se não entras em mim. Eu quero é entrar em ti.”, tens de ser recetivo e não crítico. Há duas maneiras de falar de um filme: espetáculo e cinefilia. Se for o primeiro, a audiência está-se a borrifar para o que eu tenho a dizer, mas se for o segundo sei que haverá um reflexo analítico. E juro-vos, juro-vos aqui e agora que nunca escrevi uma crítica de um filme sem o ver, pelo menos, quatro vezes. Quando fiz o C’estl’amour houve um crítico que escreveu “É um filme demasiado escrito.” E eu escrevi-lhe um post de Facebook a perguntar “Porquê?” e ele não me soube responder. A crítica negativa não importa mais nem menos que a positiva porque é um outro olhar sobre o trabalho que faço. Mas aprendi que a crítica escreve às vezes sobre os filmes sem percebê-los.

Considera o Jean Renoir sobrevalorizado, mas, ao mesmo tempo, não acha irónico que seja considerado como o seu herdeiro?

Foi o Truffaut que disse que o único herdeiro do Renoir era eu. Não concordo, mas atenção, adoro o cinema de Renoir! Apenas não compreendo como grandes cineastas como ele ou o Visconti tinham gestos vulgares. No caso do Renoir em La Bête Humaine, há uma cena de amor entre o Jean Gabin e a Simone Simon onde ele faz uma panorâmica horrível. No caso do Visconti, no Rocco e os seus Irmãos há algo parecido. Na altura falava-se da política de autores, mas hoje em dia é necessário bater nessa política! Hoje é preciso dizer-se “há um filme genial com um plano idiota”! Ou então “há um filme de um realizador medíocre com três planos sublimes”! Acho anormal que uma pessoa que trabalhou vagamente num argumento bloqueie o trabalho de 50 outras pessoas. Já me bati no tribunal por situações assim.

Femmes Femmes (1974)

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