Terça-feira, 19 Março

Jorge Cramez: “O cinema é tudo, e um realizador é a acumulação desse tudo”

Há 10 anos estreava entre nós a tragédia shakespeariana “Capacete Dourado”, que teve como pano de fundo um romance inconclusivo que incendiou os medias portugueses. O filme foi apresentado em Locarno e a sua passagem foi, de certa forma, feliz e elogiada. A técnica por detrás desse filme tornou-se uma carta de amor entre o realizador e a narrativa visual, o plano, a perspetiva e o olhar. Infelizmente tivemos que esperar uma década para este regresso às longas-metragens.

Cramez apresenta “Amor Amor”, uma tragicomédia de paixões proibidas ou simplesmente, procrastinadas pelo bem de uma fraternidade. A decorrer no último dia do ano, “Amor Amor” que se destaca do resto da Competição Nacional do Indielisboa pelo seu rigor técnico, pela paixão de construir um filme estruturalmente. O C7nema falou com o realizador sobre esse regressar e a importância estética por detrás dos seus filmes.

Provavelmente toda a gente faz esta mesma pergunta, como foi regressar ao formato das longas-metragens após um intervalo de dez anos?

Foi complicado. Era como se tivesse passado outra vez por aquela sensação de primeira obra, mas não passando pelos mesmos dramas. Foi difícil esta intermitência de ter que voltar às situações que já deveríamos ter ultrapassado. Porém, sou uma pessoa muito feliz quando filmo, o que é um factor bastante bom porque atenua, de certa forma, esta readaptação. Mas obviamente, temos outras complicações, falo das questões materiais, da produção, do tempo de rodagem, dos orçamentos.

Mas atenção, eu não parei de fazer filmes durante este período de 10 anos. Conto cerca de 5 ou 6 curtas-metragens da minha autoria, algumas delas financiadas pelo ICA, nem que seja pelo apoio desta, outras produzidas por mim, entre as quais algumas para o MOTELx. Ou seja, não parei de filmar durante esse tempo, nem sequer me afastei do cinema, em acréscimo tenho ainda trabalhos como anotador, assistente de realização, etc.

Em relação à pergunta original, esta experiência foi relativamente boa, mas ao mesmo tempo existe este peso, estas questões que não deveriam sequer existir nesta altura. Tal não existiria se filmasse com maior regularidade.

E que altura decidiu regressar ao formato?

Isto tem muitos anos, na realidade, há 10 anos de intervalo entre o “Capacete Dourado” e este filme. Mas no ano em que obtive apoio para o “Capacete’”, foi no último em que os realizadores podiam submeter mais do que um projeto. Eu concorri com os dois, sendo que, julguei por algum tempo que teria sido o “Amor Amor” a ser aprovado o financiamento, mas acabou por ser o filme que todos nós sabemos. Ou seja, este novo filme já existia, mesmo em estado embrionário, desde o tempo do “Capacete Dourado”, e mais, a ideia chega a ser anterior a esse filme.

E que altura foi essa?

O filme nasceu no início dos 90, mais concretamente quando vi a peça do Corneille [La Place Royale ou l’Amoureux Extravagante] na Cornucópia, encenada pela francesa Brigitte Jacques (Benoît Jacquot filmou a sua peça). Fiquei na altura fascinado, pelo que quis extrair essa temática de Corneille e nela depositar o meu universo afectivo como a do meu seio de amigos. Aquelas personagens [a do filme “Amor Amor”] tem referências na minha vida, a Marta é a Marta, Carlos é o Carlos, o Jorge … pronto sou eu, mas menos bonito [risos]. Todo um filme é um conjunto de alter-egos.

Mas nesse intervalo, propriamente dito, as suas curtas operaram como esboço para este filme, não foi?

Sim. Nas curtas experimento aquilo que depois aplico neste filme, ou seja, estamos sempre a fazer cinema. E o que o cinema significa para mim? Sei lá, eu tenho 50 anos de cinema em cima, comecei a ver Cinema a partir dos quatro anos de idade. Depois de ter vindo de Angola para Portugal, com os meus 12, 13 anos até aos 25, estava mais tempo na Cinemateca do que noutro lugar. Passava os meus tempos a ver filmes, na Cinemateca via cerca de 3 a 4 filmes, era a descoberta de um Cinema antigo que coliga com o nosso moderno. E depois de sair de lá, ainda ia ver uma estreia qualquer em sala. Penso que os filmes vem daí, é algo muito intuitivo, não sei explicar ao certo

Tendo em conta as temáticas de ambas as suas longas, “Capacete’” e “Amor’”, considera uma pessoa romântica?

Não é bem isso. [risos] Interessa-me os dilemas amorosos, mas não sou necessariamente romântico. É uma questão que me interessa, e que é transversal no meu trabalho. Falo de amor e trabalho com o amor.

Falando em amor, algo que se nota nos seus filmes é que possui uma certa afeição pelo plano. Como consolida essa narrativa visual, ou planificação, frente ao argumento que dispõe?

Sou obsessivo com o quadro, o que é muito óbvio nos filmes. Sou aquela pessoa que depois do diretor de fotografia, vou lá e fecho o “quadro”. Também não consigo explicar o porquê dessa obsessão, faz parte dessa veia cinematográfica em mim, por vezes imagino um plano antes dele acontecer. É a nossa vida de cinéfilo, vemos e instantaneamente acumulamos referências, estas tornam-se parte de nós, e como gosto muito de pintura e frequento habitualmente museus para ter a chance de olhar atentamente para esses quadros. Isso está presente nos meus filmes. Eles possuem um lado formal, um rigor técnico e visual.

Há quem prefere submeter-se a uma câmara à mão, eu nem por isso. Mas em “Amor Amor” também utilizei esse tipo de planos, inclusive há uma sequência, um diálogo entre Carlos e Jorge na praia, pelo qual utilizei esse método. Mas esse mesmo soa como steadycam e não uma handcam. Devo muito esse profissionalismo técnico a João Ribeiro, o meu técnico de fotografia. O cinema é tudo, e um realizador é a acumulação desse tudo. Mas para mim, ainda mais importante que o plano, são os atores.

Sim, os atores. Cada vez é mais difícil reunir as suas “velhas caras” em novos projectos?

Por exemplo, na sessão de apresentação do filme foi muito difícil reunir o meu elenco. A disponibilidade tem sido cada vez mais difícil. Quando não estão a fazer Cinema, estão a fazer teatro ou até televisão que ocupa grande parte dos respectivos tempo. Mas não os censuro, a disponibilidade que eles tiveram para mim foi óptima. Estou grato.

Mas continuando na técnica, é de reparar que o Jorge tem um “amor” ao plano-conjunto.

Sim, tento evitar os campos, contra-campos, como os amores e os espaços. A minha câmara é muito frontal, muito devedora à perspetiva do espectador. E gosto do plano-conjunto que é uma forma de conseguir captar uma certa reacção instantânea na ação.

E novos projetos? Continuará nas longas?

Espero que o filme corra bem para já no próximo ano filmar outro. Terminei o Amor Amor ano passado.

Na sua opinião, acha que o cinema português precisa ser salvo?

Ele existe e existe bem. Ainda agora vamos ter uma curta de animação [“Água Mole”, de Laura Gonçalves] e outro da Marta Mateus na Quinzena. A Leonor [Teles] ganhou um Urso há dois anos, o Diogo [Costa Amarante] este ano, o Salaviza ganhou a Palma de Ouro, João Pedro Rodrigues foi premiado em Locarno … Não acho que o cinema português tenha que ser salvo.

O cinema continua a existir neste país, continuamos a fazer coisas. Um problema que se pode abordar, mas nem sei como resolver na actualidade, visto que falamos de amor, é o desamor do nosso cinema pelo público português. João César Monteiro fazia quase 10.000 espectadores aqui e se calhar fazia 150 mil em Itália, o Oliveira sempre teve mais espectadores lá fora do que cá.

Tem que ser salvo? Não sei. Depois há o lado da política, e nessa, a política de apoios. Mas eu não quero me meter nesse assunto, porque normalmente quem mais fala, é quem possui mais subsídios. Não, nem vou por aí. O que mais gosto de fazer é filmar e sou feliz a fazê-lo.

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