Terça-feira, 19 Março

“O governo de larápios” e o “esfacelamento dos trabalhadores”: uma entrevista com Affonso Uchôa e João Dumans

 

Uchôa e Dumans são os realizadores de Arábia, projeto brasileiro que faz parte da Competição Internacional do IndieLisboa – em curso na capital até o dia 14. O C7nema conversou com os responsáveis por este tipo particular de “road movie” que acompanha a vida dos trabalhadores pobres que emigram no interior do Brasil à procura de um lugar melhor.

Na história, Cristiano (Aristides de Sousa), depois de sair da prisão por um pequeno delito, perambula por locais onde encontra diferentes tipos de opressão – desde a rural até a da fábrica. Para além da questão social e do que definem como o “esfacelamento da classe trabalhadora” brasileira, o filme aborda ainda o caráter existencial da condição do trabalho.

Tanto este quanto o filme o filme de estreia de Uchôa, a docuficção A Vizinhança do Tigre, tiveram a sua estreia internacional no Festival de Roterdão.

Em relação a Vizinhança do Tigre, que foi dirigido pelo Affonso Uchôa e coescrito pelo João Dumans, havia um retrato de um pequeno universo, era restrito a um bairro de Contagem (cidade do interior do Brasil). Em Arábia há um elemento de “road movie”, há um personagem andarilho que vai conhecendo diversas realidades…

Affonso Uchôa: Essa diferença de “amplitude espacial” vem muito da diferença de natureza entre os dois filmes: o Vizinhança tinha um pacto de sangue com a realidade dos atores e o facto de eles ficarem muito no seu próprio bairro, sem muito trânsito pela cidade. Era algo fundamental do quotidiano deles.

No Arábia nossa inclinação pela ficção é muito maior e, por isso, podemos levar nossa imaginação a diversos lugares. Há também algo nessa diferença que me parece fundamental: no Vizinhança a opressão está localizada e o fato de eles estarem confinados sempre no mesmo espaço é a sua face mais visível. Os centros das grandes cidades no brasil são hostis ao pessoal da periferia. O bairro se torna, então, um refúgio.

No Arábia, a opressão está por toda parte. Não é somente uma oposição entre centro e periferia, e sim a evidência de que pessoas como Cristiano estão fadadas a serem sempre “o excluído” em qualquer parte que estejam. No Vizinhança a periferia é uma geografia, no Arábia ela é um estado de espírito, uma espécie de condição de existência.

Também há um movimento no sentido da docuficção, naturalista, para algo mais assumidamente ficcional…

João Dumans: A opção pela forma em cada um desse filmes tem a ver com o que queríamos mostrar. Em A Vizinhança do Tigre o importante era o retrato daquelas vidas, e também os jogos e as representações que os atores criavam entre si. Então era necessário que o filme fosse mais aberto à realidade.

No caso do Arábia, havia um impulso de natureza mais literária. E na criação do próprio personagem, no desejo que ele existisse, talvez houvesse também algo de utópico. Por isso a sua história – e sobretudo a maneira como ele a conta – tinham que ser construídas do início ao fim. Mas a base continua sendo a realidade, especialmente a realidade do ator, Aristides, que é o mesmo nos dois filmes.

Nesta história de migrações pareceu-vos importante retratar a vida dos trabalhadores pobres, da precariedade e, particularmente na sequência final, o “sonho” do Cristiano, remetem mesmo à uma questão existencial…

João Dumans: Acho que a questão social e a questão existencial estão ligadas no filme. Interessava-nos falar da vida dos trabalhadores, especialmente daqueles que vivem à margem, porque para nós são essas as verdadeiras histórias do nosso tempo: a dos excluídos, dos que não se adequam, dos que devem permanecer calados e, de preferência na invisibilidade. No Brasil isto segue uma lógica política e social perversa – que remonta inclusive, ao período da colonização.

 

A questão é que o cinema brasileiro já explorou essa tragédia até onde pôde e, muitas vezes, de maneira paternalista, fazendo da pobreza um elemento de chantagem emocional. Era justamente isso que queríamos evitar. Queríamos que a história se situasse no nível do olhar do personagem, e que uma reflexão sobre si mesmo também fizesse parte desse processo.

A questão sindical, propriamente, aparece em dois momentos, mas sob um ponto de vista diferente. No primeiro caso, há Barreto, que conseguia unir trabalhadores para conquistar melhores condições. Muitos anos depois o personagem Cascão já não acredita neles, que “não faz diferença”.

Affonso Uchôa: Para nós era importante fazer com que a trajetória do Cristiano fosse ao mesmo tempo íntima e histórica. Nesse sentido, queríamos que ele vivesse seus dramas pessoais ao mesmo tempo que testemunhasse (e vivesse) algo importante da história brasileira: o esfacelamento da identidade da classe trabalhadora.

Essa questão é fundamental no Brasil atual, no momento em que o (ilegítimo, lembremos) governo atual patrocina uma reformulação na legislação trabalhista que transfere para os patrões o poder de colocar limites nos direitos do trabalhador. Os anos de domínio de um partido de trabalhadores no Brasil não trouxeram uma representação coletiva mais forte.

Hoje, no Brasil, eles não têm nenhuma organização que os consiga organizar em uma luta comum e, em breve, se esse governo de larápios continuar a ter a liberdade que tem, não terão nem leis que os defendam da pura e simples exploração. Entre Barreto e Cascão vemos um pouco da ruína da união entre trabalhadores. Nosso personagem a perceberá de uma maneira muito pessoal, e dará a sua resposta, íntima, silenciosa, para essa solidão.

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