Sexta-feira, 19 Abril

André Santos e Marco Leão: «o cinema tem um lado místico»


João Villas-Boas, André Santos, Marco Leão e Filipe Abreu no Festival de Sundance

André Santos (AS) e Marco Leão (ML) são um duo de cineastas portugueses, cujo percurso já passou pelo IndieLisboa, Curtas do Vilas do Conde e no Córtex. O último trabalho de ambos, Pedro, esteve na secção competitiva de Sundance este ano, a primeira produção inteiramente portuguesa a conseguir o feito.

É a propósito da passagem de 3 dos seus filmes (Infinito, Aula de Condução e Pedro) na Cinemateca Portuguesa, dia 5 de abril, que o C7nema se encontrou com eles no Bar 39 Degraus. Uma conversa que vai desde o início dos respetivos percursos cinematográficos, à opinião da recente polémica dos júris para atribuição de financiamento, passando por uma breve análise sobre cada uma das obras em exibição.

Como é que foi a experiência em Sundance?

ML: Foi incrível. Era um festival que estava no nosso imaginário desde sempre. Muitos filmes que admiro passaram por lá, logo era uma imagem muito forte na minha cabeça. Nunca imaginei, assim de repente, que o nosso filme pudesse integrar no festival. Foi uma surpresa.

De certa maneira foram pioneiros, em termos de cinema português em Sundance.

ML: Nas curtas, sim. Em longa-metragem houve há uns anos O Herói de Zezé Gamboa, mas curtas ou, pelo menos, produção inteiramente portuguesa ainda não tinha existido.


A equipa de Pedro em Sundance

Como é que foi a receção ao filme?

AS: Foi ótima. Vais na rua e as pessoas abordam-te para falares do filme. Os americanos são muito descontraídos e nós europeus ficamos logo de pé atrás (Risos).

ML: Quando tentas procurar coisas muito inovadoras, às vezes tens propostas muito diferentes. Há coisas mais narrativas, outras menos. No nosso caso, há pessoas que encaram o filme como uma experiência bastante narrativa e é mais fácil sentires a história e perceberes o que é que o filme trata.

AS: Até porque o tipo de programação deles, vais desde a coisa mais artsy fartsy, experimental e de galeria para o mais americano e formatado. Na nossa sessão tivemos algo bastante televisivo e as pessoas estavam a adorar.

Como é que cada um de vocês se introduziu na atividade cinematográfica e como é que se iniciou esta colaboração?

AS: Conhecemos-nos quando tínhamos 16 anos num concerto punk de um amigo na altura. E voltámos a ver-nos mais tarde na faculdade. Eu estava a estudar Publicidade e Marketing. Juntei-me a um núcleo de vídeo da escola e basicamente eu filmava os projetos de algumas pessoas de Audiovisual.

ML: E eu Audiovisual e Multimédia. Apesar de estar mais relacionado, o curso não era muito cinematográfico, mas mais técnico e com uma linguagem diferente. Tivemos aí logo experiências de audiovisuais juntos, embora não fosse cinema. Depois disso, decidi tirar um curso de pós-produção na Restart e o André um de realização.

AS: Eu quando acabei a faculdade estava completamente miserável com a vida. Uma pessoa que acaba um curso de 4 anos de Publicidade e Marketing não está propriamente feliz. Fui estudar aquilo na altura porque tens 18 anos, estás a acabar o secundário e pensas “Epá, se calhar é fixe.” Claro que uma pessoa ao fim de 2 anos no curso pensa “O que é que eu fiz à minha vida?” E entretanto, sim, fomos para a Restart e começámos a trabalhar juntos. Foi aí que fizemos o nosso primeiro filme e que agora, ao olhar para trás, vejo como uma experiência rudimentar de cinema e que acabou depois por estrear no IndieLisboa em 2009.

Começando no vosso primeiro trabalho a ser exibido na Cinemateca (e a vossa terceira curta), Infinito, é impressionante o que fazem com a imagem e o som. Abdicaram muito de dispositivos narrativos normais (o argumento, os diálogos), mas a forma como filmam a floresta e os sons que captam parece que, por si, contam uma história. Como vêm esta maneira de fazer cinema?

AS: Na altura era o tipo de proposta que estávamos à procura. Durante algum tempo lutei contra a ideia do cinema como narrativa. Porque acredito nele mais como uma experiência sensorial do que uma ideia de narrativa fechada com princípio, meio e fim. O que nos interessava com esta curta era isso. Levar-te a partir do carro e ires até ao encontro daquele sítio. Interessava-me o estar-se naquele momento. Estares com aquela criança e aquela mãe naquela tenda, desde o início que era para nós o filme. Parece uma experiência fria porque o ambiente é frio e o som é um bocado denso, até chegares ali e tudo aquilo desconstruir-se num espaço de conforto. Que era o que queríamos.

Tinham um guião?

AS: Tínhamos fotografias e ideias que se materializaram em imagens. Depois acho que o filme se construiu por si próprio. Nunca foi uma coisa escrita ou pensada “Vai começar assim e acabar de certa maneira”. Foi filmado todo de seguida. Foi feita num Workshop em colaboração com uma escola francesa e tínhamos dois fins-de-semana, um para conceber a ideia, outro para filmar. Ficámos com um esqueleto do filme e resolvemos trabalhar a partir daí. Fomos filmando porque o material era todo emprestado, ou seja, tínhamos a câmara num dia e íamos para a serra filmar. De repente ficávamos sem material durante duas semanas e só voltávamos a filmar mais tarde. Foi um período um bocado difícil porque deixar um filme por acabar durante algum tempo é complicado.


Infinito

Parece que têm muita sorte do vosso lado. Por exemplo, no final do Infinito, conseguiram captar o momento em que um bebé adormece, o que é algo impossível de pedir. Até que ponto é algo escrito o vosso trabalho e até que ponto é fruto do acaso e da sorte?

AS: Eu acho que o cinema, para mim, tem um lado místico. Por muito que idealizes, inevitavelmente, há sempre algo que te acontece. Por exemplo, pode passar uma nuvem e muda a disposição de uma cena ou um bebé adormecer. Há pequenas coisas que te acontecem e que não controlas e acho que é isso que torna os filmes especiais. A ideia de que vais controlar um filme do princípio ao fim, acho desinteressante. Prefiro pensar que há mais qualquer coisa que mexe nisto tudo.

ML: Também há um enorme trabalho de paciência porque foram imensas horas para conseguir esse momento. Mas lá está, procurávamos qualquer coisa que acontecesse. O bebé poderia ter adormecido de um momento para o outro e não teria o efeito pretendido ou ter ficado calmo durante muito tempo. Queríamos captar aquela transição.

AS: E filmámos aquilo várias vezes. Tanto a mãe como o bebé são amigos nossos e nós íamos para casa montar a tenda, aquilo foi filmado no quarto da miúda. Fomos para lá, montámos a câmara e a miúda está ali horas para adormecer. Voltamos no dia a seguir e tentamos outra vez a cena.

Qual a razão para este título?

AS: Para mim o infinito é regressar a um sítio que sempre foi confortável. E há uma ideia das relações utópica. O primeiro contacto que tens com o mundo é pela família. Esta relação mãe-filho é isso mesmo. Inevitavelmente, se olhares para os nossos últimos filmes, as relações estão violentadas pelo mundo.

No que toca a escrever e a filmar, todas as ideias são debatidas ou dividem tarefas? Já houve algum texto que gerasse um conflito de opiniões?

ML: A única coisa que não acontece é ser eu a filmar e o André a fazer som. Só em último recurso. De resto é um processo orgânico e que passa sempre por entre os dois. Claro que não escrevemos as cenas ao mesmo tempo e em simultâneo.

AS: Sim, já tentámos fazer isso e correu muito mal. Eu escrevia uma frase e ele perguntava-me, “Mas porque é que puseste a vírgula ali?” E a partir daí tens um buraco. Mas esse conflito também é bom. Acho que um bocadinho de violência gera sempre qualquer coisa (Risos).

Má Raça já é mais narrativo, já há diálogos e um desenvolvimento da ação. Porque é que não quiseram repetir a estrutura do filme anterior?

AS: Inevitavelmente queres experimentar coisas. Foi a primeira vez que trabalhámos com uma equipa. As atrizes são nossas amigas e o filme também foi um bocado desenvolvido com elas, apesar de não ser biográfico. Efetivamente a atriz que interpreta a filha nesse filme estava a sair de casa naquela altura, era uma altura difícil e o filme tornou-se um bocado sobre a relação real entre elas. E o que queríamos era exatamente isso, experimentar outra coisa e com outros limites, perceber o que poderíamos fazer com a ficção porque, até à data, ainda não tínhamos trabalhado com ela de uma maneira próxima. Pareceu-nos o passo seguinte.

Má Raça

Deixam os vossos atores darem sugestões de como as coisas devem ser feitas?

AS: Para mim o cinema é um trabalho de equipa.

ML: Sim, tens que ouvir sempre as outras pessoas.

Sim, o Jarmusch diz que o conceito de cinema de autor está enganado, porque é sempre um trabalho de equipa. Mesmo o Godard já disse que quando falou em “política de autores”, a palavra-chave era “política” e não a outra.

AS: Sim, por exemplo, no caso da Aula de Condução, nós tínhamos um guião e de repente estávamos à tarde, no meio da serra, e vimos a Maria João a cantarolar no meio dos arbustos. E começámos a pedir-lhe para fazer coisas. Quando demos por nós ela estava a desfazer um arbusto à paulada, foi um claro momento de psicoterapia que conseguimos captar.


Aula de Condução

Já que falamos no Aula de Condução, há qualquer coisa que muda com ele no vosso cinema. Abnegam dos silêncios e recorrem ao uso de música, para além de terem aprofundado esta questão de um cinema mais narrativo.

AS: Acabamos sempre por querer experimentar. Nós somos muito experimentais e temos uma curiosidade tremenda para com o mundo. Nós não podemos continuar a querer fazer o mesmo filme.

ML: Mas, por acaso, creio que neste filme há um retorno exato a algo mais ambiental. Para alguns é mais difícil por isso mesmo, nos momentos em que está sozinha e passeia. De certa forma, regressamos ao Infinito.

Sim, enquanto a floresta no Infinito era um sítio mais de repouso, aqui é o inverso, um local inquieto e inseguro. Dialogam com essa curta, sem, no entanto, repeti-la.

AS: Creio que isso também é devido aos locais onde os filmes são feitos. São não-lugares. Se pensares no Má Raça ou no Pedro, filmámos nas zonas-limites de cidades. O espaço não é personagem no filme, não têm geografia própria, poderiam ser qualquer sítio. Para mim são geografias interiores, sobre os conflitos das personagens.

No caso do Pedro há este fascínio pelo corpo masculino, há um encontro sexual com um estranho num ambiente exótico, um pouco semelhante ao Desconhecido do Lago. Foi uma influência?

AS: Nós escrevemos o Pedro em 2013, a seguir ao Má Raça. Tivemos que adiar a rodagem duas vezes. Escrevemo-lo primeiro e vimos O Desconhecido do Lago mais tarde. Mas filmámos na Praia Dezanove, uma zona de engate. Aquilo que está registado é o que vemos sistematicamente todos os verões. Não tem nada a ver com o facto de estar no filme de outra pessoa.

ML: Por acaso pensámos, depois de ver O Desconhecido… se ainda havia sentido em fazer o nosso filme. Continuo a achar que sim, mas era um risco que tínhamos de correr. Acho que a única coisa que liga estas duas obras é o local. Mas aquilo que a história trata é diferente, trata-se apenas de uma ligação espacial casual.

Pedro é sobre um rapaz à descoberta da sua sexualidade. Como foi construída esta personagem? Tem alguns elementos autobiográficos?

ML: Todos os nossos filmes têm algo de autobiográfico, trata-se apenas de reconstrui-lo. Não te posso dizer que seja apenas a minha história, é também a de várias pessoas que nos falam das delas.

AS: Sim, o nosso trabalho é autobiográfico, não como uma ideia de uma reconstrução da nossa realidade, mas uma transposição da mesma para as histórias de outros. Claro que o Pedro é construído pela relação que temos com o mundo, com os nossos pais, com o sexo. Mas começou de uma forma muito simples, um amigo nosso chegou a casa de ressaca, deitou-se na cama e meia-hora depois a mãe disse-lhe “Olha, vamos à praia”. A história começou com uma premissa tão simples quanto esta. Começas com uma pequena ideia e preenche-la com a tua própria.


Pedro

Como explicam a relação distante entre ele e a mãe? Há um grande distanciamento entre ambos, mas não um confronto físico.

AS: Há medida que cresces, todas as expetativas que ficas com o mundo criam zonas cinzentas nas tuas relações. O Pedro e a mãe gostam um do outro, mas as expetativas que ambos têm, colidem. Efetivamente acho que têm necessidade de irem para sítios diferentes e estes dois corpos que se movimentam num mesmo espaço (que é uma casa) nem sempre têm a expetativa de irem para o mesmo sítio, apesar de forçosamente se encontrarem. Inegavelmente há amor naquela relação, embora não seja a coisa mais feliz e tradicional, mas não é menos válida por isso.

Neste concentram a ação numa praia, prevalecendo os planos de conjunto e gerais. Para além disso, enquanto faziam da floresta algo mais envolvente, na praia usam-no como um espaço de maior liberdade. E este contraste interessa-me muito, a forma como conduziram as vossas personagens para um ambiente mais exótico e voluptuoso, mas, em simultâneo, afastaram a câmara delas.

ML: A praia é um espaço completamente aberto, é um campo de possibilidades enorme. Se optares por te aproximar das personagens e teres tudo muito constrangido, acho que perdias a relação e o contexto que existe com aquela abertura toda. É um espaço muito árido. Aquele conflito entre os dois, num espaço maior, torna-se mais evidente.

AS: Sim, são eles os dois, a areia e mais nada. Mas acho que também teve a ver com o seguinte: conhecemos o Hugo Azevedo (diretor de fotografia) dois dias antes da rodagem porque a pessoa que ia filmar connosco adoeceu, o que foi assustador. Tínhamos o filme quase todo idealizado, quadros muito mais largos, com muito mais céu. De repente, o Hugo começou a filmar e começámos a ver os enquadramentos a abrir e tive dois dias a lidar muito mal com o material que estávamos a produzir. Eu estava-lhe a pedir o que queria e fiquei aterrorizado quando vi o material porque não sabia se era, de facto, o que queria. Quando vimos um primeiro rough cut pensei, “Meu Deus, o que é que fizemos?”

Têm projetos futuros? Alguma longa-metragem?

ML: Sim, já temos a primeira versão do argumento finalizada. Acabámos há duas semanas. Estamos a preparar outra curta que pensamos filmar antes do Verão. Mas não vemos as curtas como um caminho a percorrer antes de chegar à longa-metragem. Há histórias que só fazem sentido em curtas e vamos continuar a fazê-las regularmente. Mas com este argumento vamos tentar ir a alguns laboratórios de escrita internacionais. Ganhámos pela primeira vez financiamento para a produção de um documentário experimental filmado no Japão, em Aokigahara, a floresta dos suicídios. E sim, mais uma vez escrevemos um projeto e passado um ano saíram dois filmes sobre o assunto (Risos).

AS: Uma coisa boa de ires a um festival como Sundance é que, de repente, és contactado por toda a gente a convidar-te a submeter projetos, a submeter versões dos argumentos. Parece que, de repente, as pessoas lembram-se que existes. É nisso que estamos focados, alguém que nos ajude a levar o filme para outro sítio.

Vocês têm um percurso de festivais, principalmente no Indielisboa, mas quando o submetem a um, não o conseguem estrear noutro como, por exemplo, o de Curtas de Vilas do Conde. Até que ponto o país não fica partido relativamente ao conhecimento do vosso trabalho?

ML: É ingrato, são públicos muito distintos. Pessoas que trabalham na área podem, de facto, viajar e dar-se ao luxo de ver os filmes tanto aqui, como no Curtas. Agora, quanto às restantes…

AS: Nós tentamos jogar com isso. Um filme vai para cá, outro vai para lá. Mas sim, esta rivalidade entre festivais é incompreensível, principalmente se tivermos em conta que são tão poucos filmes a serem produzidos em Portugal.

Ou seja, os festivais ao mesmo tempo que são bons para vos divulgarem, também vos “castram” neste sentido.

AS: Sim, mas o Curtas também tem a secção do Panorama, onde eles passam filmes que já estiveram noutros festivais. Mas esta presença ajuda-nos a levar o filme lá para fora. Inegavelmente fazemos filmes por causa do Indie e do Curtas. Fizemos uma primeira curta que estreou no Indie e que era um cinema completamente rudimentar, a seguir voltámos a arriscar com outro filme no Curtas e também correu bem. Se não nos tivessem aberto a porta, já não fazíamos filmes há anos.

ML: Podemos pensar que estes novos cineastas que se criam, é também graças a estes festivais. Porque existe o Curtas do Vila do Conde, o Doclisboa, entre outros. Se não houvesse uma mostra nacional, haveria menos pessoas a quererem fazer coisas.

Têm uma opinião sobre esta questão dos júris para atribuir financiamento aos filmes portugueses?

ML: Nós assinámos a carta contra a SECA. Tem que se tentar encontrar um ponto de equilíbrio. Por causa disto ainda não se abriram os concursos do ICA e está tudo atrasado. O que nos interessa a nós e aos produtores é que tenhamos as condições para continuar a trabalhar. Claro que a partir do momento em que tens operadoras que pagam a taxa contrariados e depois querem ter um lugar sobre os filmes que querem produzir ocorre um conflito de interesses. Acho que o ICA deve existir para apoiar filmes que, de outra maneira, não poderiam ser feitos. Podemos estar a ser injustos, mas há muitos filmes que vão ser apoiados pelo ICA que, se calhar, encontrariam outros caminhos para existir. E há outros filmes que vão ficar por fazer, o que é prejudicial para todos nós.

Seriam capazes de fazer um filme escrito por outra pessoa?
AS: Neste momento digo-te que não. Mas eu tenho 32 anos, se calhar daqui a 10 a conversa é outra (Risos).

Onde é que se vêm daqui a 10 anos? Cannes, com a segunda longa-metragem?

AS: Se estivermos a filmar em 5 anos a nossa primeira longa já é muito bom. Mas parece-me muito difícil pela forma como as coisas acontecem em Portugal.

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