Sexta-feira, 29 Março

Cristian Mungiu: “O regime já não é mais o inimigo número um”

Premiado com o Prémio de Realização na 69ª edição do Festival de Cannes, Cristian Mungiu apresenta O Exame, a sua última obra que remexe novamente em consciências morais e em fantasmas do regime de Ceauseascu. Este filme de fortes traços de realismo filmado, chega às nossas salas após uma passagem pelo Lisbon & Estoril Film Festival. O C7nema teve o prazer de falar com um dos grandes nomes da chamada Nova Vaga do Cinema Romeno.

Como surgiu o argumento deste O Exame?

Foi uma combinação de vários temas. Durante algum tempo estava determinado em fazer um filme sobre o “envelhecimento“, aquele que só acontece quando olhamos para trás e apercebemos que esse mesmo passado não nos agrada, assim encaramos o futuro com outro objectivo. Na altura, não encontrei automaticamente a história certa.

Em simultâneo, reflectia sobre a paternidade, a educação, nas minhas crianças e foi então que me surgia em mente, questões como: “o que posso dizer aos meus filhos sobre a sociedade que vivemos? Qual o tipo de futuro que queremos para elas e pode ser proporcionado?” Depois, procurei a melhor forma de expor a sociedade atual, uma relação que compromete-se através de uma sociedade corrosiva. Todos estes temas borbulhavam na minha cabeça, a partir daí decidi combiná-las num só filme, porém, como não tinha a narrativa nem a temática escolhida, peguei no meu computador e lancei-me numa pesquisa por inúmeros artigos de acontecimentos que marcaram a nossa sociedade nos últimos 5 anos.

Foram notícias, jornais, revistas, o qual rabisquei, cortei e colei, até conseguir criar um argumento que falasse de todos esses problemas sociais e que tivesse uma certa ligação real, mas que não fosse totalmente baseado em factos verídicos. Como tal nasceu O Exame, um filme que fala sobre o futuro, o crescimento e as nossas próprias decisões.

É possível educar as nossas crianças com uma educação diferente daquela que obtivemos?

Não sei, foi graças a essa questão, pelo qual, eu fiz este filme. Através desse dilema tentei fazer com que O Exame me respondesse. Será possível que o Mundo mude através de uma nova geração, sabendo que essa mesma é educada pelos mesmos ideais e valores de uma geração anterior? Sinceramente, não sei. Só sei que tal não é racional, para o Mundo realmente mudar, era preciso que essa nova geração afastasse dos seus antecessores, teria que haver um espaço ininterrupto que pudesse quebrar a corrente. Quando falo nisto, não digo que devemos negligenciar os nossos filhos, não, teríamos que sim educá-las consoante o mais adequado para uma eventual mudança, e não para o que achamos correto. Obviamente que com isto não quero afirmar que sou um mau pai, porque uma coisa é fazer da maneira mais racional possível, a outra é comprometer as nossas ligações emocionais com as pessoas que mais amamos.

Penso também que fiz este filme sobre as pessoas que são incapazes de lidar com as situações de forma racional, que se deixam levar pelas emoções. Até porque não somos personagens, somos seres humanos que dificilmente acreditamos ou questionamos aquilo que nos acontece em vida.

O Exame, é no geral, uma reflexão sobre os limites da paternidade?

Sim, pode ser um filme sobre os limites da paternidade, sabendo que com a paternidade surgem vários dilemas, muitos deles, não com as respostas corretas. Sabes, por vezes é fácil, enquanto pais, causar danos às nossas crianças, mesmo que isso não seja totalmente intencional, como o encarar a sabedoria como algo hereditário, que passe de geração a geração. É evidente que mesmo com a educação atenta dos nossos pais, praticamos as nossas próprias decisões e cometemos os nossos próprios erros, mas é ao tornar-nos pais que afrontamos a ideia de que podemos realmente moldar os nosso filhos consoante a nossa “educação“, ou seja, acabamos por cometer os mesmos erros que os nosso pais, e assim sucessivamente. É uma corrente.  

Educamos as nossas crianças tendo como base a educação que os nossos pais nos deram, chegando mesmo a afirmar as mesmas afirmações que os nossos progenitores proclamaram certo dia. Pensamos “nem acredito que estou a dizer isto?“. Obviamente, que também pensas como seria bom que as coisas acontecem desta maneira, mas ao mesmo tempo sabemos que não vai seguir o previsto.

Se nós estamos a preparar as crianças para a vida real, temos que parar com o habitual discurso moralista de “não mentir“, “não roubar“, “não trair“, “não pisar os outros“, esses moldes de doutrinas são, de certa maneira, vistas como ideais de um “falhado nesta sociedade“, por outro lado, ensiná-las a ser lutadoras poderia, de certa forma, alterar essa mesma. Mas isso cabe a nós decidir, quais são os verdadeiros limites da paternidade. Conforme seja a nossa decisão, andamos de “mãos dadas” com as alterações da nossa sociedade.

Em O Exame, ficamos com a sensação de que a corrupção, por mais pequena e involuntária que seja, é um ato profundamente natural do Homem moderno.

Para responder a essas questões, eu cito inúmeras vezes a realidade, sem necessariamente julgá-la, nem explicá-la por demasiadas palavras. Mas julgo que essa corrupção é muitas vezes confundida com o compromisso, uma espécie de mecanismo de sobrevivência, uma adaptação aos obstáculos que nos surgem, mas ao mesmo tempo, quando somos pais, temos que carregar este “fardo”. É essa a diferença do mundo idealista, aquele, pelo qual, preparamos a nossa criança, e o mundo real.

O filme tenta investigar aos poucos esta relação, gradualmente aborda as causas da complexidade deste fenómeno [corrupção], que é algo tão fácil de julgar. O Exame diz que nem tudo isto é errado, até porque quando queremos ajudar alguém ou até mesmo combater um regime, praticamos estes actos “imorais“, no entanto, os encaramos como uma espécie de luta, até porque as nossas intenções são boas. Nos dias de hoje, o regime já não é mais o inimigo número um, ao invés disso, nós é que nos tornamos a grande ameaça. Nós é que redefinimos os limites da nossa consciência moral.

De regresso à sua questão, julgo que as pessoas encontram-se desapontadas devido à dificuldade, ou quase impossibilidade, de mudar algo. As coisas são o que são, e é preciso imensa energia para uma pequena mudança. Quanto à mudança total, é quase “o impossível“, que é apenas resolvida com soluções coletivas. O filme refere bastantes essas divergências entre decisões individuais, aquelas que fazemos para nós ou para a nossa família. A imigração é um bom exemplo sobre soluções individuais. Todavia, é necessário existir as ditas soluções colectivas, se não, o “barco” naufraga.

O Exame entra em paralelismo com um êxito seu, 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias, onde um especifico evento abala e altera toda a personagem. É este o seu modo de narrar as suas histórias, pegar em acontecimentos que drasticamente marcam as suas personagens?

Não sabemos o que vai acontecer a estas personagens após o desfecho do filme. Quem sabe? Sim, eu pego em eventos drásticos que as suas personagens vivem, mas se estas vão mudar a conta disso, sinceramente, não sei responder. Julgo que isso não acontece muito na vida real e penso que nós próprios não mudamos assim tanto, mas é com as experiências que aprendemos algo. Algo sobre a vida, sobre si mesmo, sobre a situação, sobre a sociedade, até mesmo de integração. Mas julgo que tal não nos altera em longo termo, ao invés disso, algo morre em nós, perdemos algo muito próximo, e compreendemos que vivemos uma vida, e ta evento poderá ser importante, mas que só durará 3 dias, e depois regressas à tua vida.

Por isso, não sei realmente o que vai acontecer a estas personagens, mas o espectador deve entender que eu falo sobre as suas respectivas vidas reais. Por vezes, chegamos a entender o que vivemos através de vidas encenadas no grande ecrã.  

No final das sessões dos meus filmes, mais concretamente nos QaA, ouço imensas experiências vividas pelos espectadores. Ou seja, eles, de certa maneira, identificam-se com o que está retratado. É por essas e por outras que existe o Cinema.

Então é, em derivação dessa aproximação, o motivo pelo qual os seus filmes deverem muito ao realismo?

Faço esse estilo, porque é a minha definição de Cinema. Porque acredito que o Cinema pode ajudar, não só, a conhecermo-nos, mas também a entender os outros, as nossas vidas, o nosso redor, e para isso temos que praticar um Cinema mais vinculado no realismo, apesar da vida real não ser tão espetacular, nem entusiasmante.

E ao seguir esse mesmo estilo, temos que ponderar alguns artifícios bem valiosos no Cinema, um dos exemplos é a edição. Na vida real não há edição, por isso, o meu Cinema tem que possuir o menor uso desse mesmo artificio, toda a cena deve ser filmada num só take. Outro exemplo é a música, não existe bandas sonoras na vida real, tal não poderá existir no meu Cinema. O que tento fazer é captar a emoção através da situação, é uma tarefa árdua, eu sei, sem a utilização desses artifícios, mas é sim que pretendo continuar a fazer Cinema.

As edições rápidas, as músicas que entram e saem, as cenas de ação, são tudo factores sedutores. Principalmente para quem deseja fazer entretenimento. Para os meus filmes que falam sobre as vida das pessoas, não pode existir esses meios de manipulação. Para tal, tenho que abdicar desses mesmos artifícios narrativos.

Por vezes eu sinto que os meus filmes adquirem um certo padrão de thriller, mas isso é a forma com que sinto em relação à vida. As pessoas estão cada vez mais stressadas, angustiados e decepcionadas.  

É complicado filmar tudo num só take?

Por onde devo começar. Primeiro analiso e escolho a luz, abordo a cena e tento ver qual o ângulo que a filmar, atesto através da perspetiva que anseio contar esta determinada ação. Penso num cenário, durante a escrita, e procuro algo que corresponda ao imaginado. Se não encontro, construo-o. Obviamente que aquilo que imaginas não se aproxima da realidade, mas enquanto não houver mais nada a fazer, adaptas.

Depois trazes a equipa técnica, que trazem equipamentos de variados tamanhos e feitos. O Cinema é um processo bastante técnico que parece criativo. A partir daqui, posicionamos todos nos seus devidos lugares, apontamos a câmara para o ângulo desejado, e os actores decoram os seus diálogos e gestos em cenas de 10 a 15 minutos, pelo qual devem efectuar na perfeição. Todo este processo, só numa cena, demora … deixa lá ver … 20 a 40 takes.

É cansativo, complicado e no final do dia sentimos absolutamente exaustos, mas igualmente realizados. Todos os dias acabo por falar com cada um dos membros da minha equipa, encorajando-os para mais um round ou reparando certos pormenores. Todo os dias é uma luta, se não conseguimos filmar mais que uma cena num dia, tudo bem, alteramos o  cronograma, e recomeçamos no dia seguinte. Eu consigo fazer isto, até porque sou o produtor dos meus próprios filmes, o que me dá o direito de usufruir esta liberdade.

Quanto a novos projectos?

Não falo sobre novos projectos, porque nunca tenho novos projectos. Penso demasiadas vezes nos meus filmes, naquilo que fiz bem, no que correu não tão lindamente, no que foi importante referir ou o que precisa ser referido. Mas também penso nas pessoas, mais concretamente naquilo que as deprime, que as deixa angustiadas. Tento compreender as suas naturezas, as suas causas, e em consequência disso, por vezes, acabo de encontrar o filme certo, o ritmo certo e a história certa.

Muitos pensam que tudo se resume a direcção, mas para mim o mais relevante é o argumento. Procuro sempre o tópico, o tema e como o abordar, e como deve ser abordado.

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