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Anne Fontaine: “As violações são ainda consideradas uma arma de guerra”

As atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial geram, por si, mil e umas histórias de horrores, intrigas passadas que poderão reflectir no nosso presente e futuro. Anne Fontaine, uma das mais populares realizadoras francesas, falou-nos do seu mais recente olhar a esse período de medo, em particular a uma história que envolve freiras, violações e tropas invasoras, um episódio ocorrido em pleno século XX, que mais parece ter saído das Idade das Trevas, Agnus-Dei: As Inocentes [1]. A realizadora de êxitos como Coco Avant Chanel e o Meu Pior Pesadelo conversou com o C7nema sobre os ecos desta história passada no presente que vivemos, sobre a sua carreira e o gosto de filmar sem desfecho à vista.

 

Como descobriu ou donde surgiu esta história?

É uma história baseada em factos reais, sobre uma médica francesa que no seu diário relatou a situação vivida por estas freiras polacas, restringidas ao seu convento, grávidas, frutos de violações por parte das tropas soviéticas. Esta mesma história chegou a mim através de alguns produtores franceses que encontraram-na e pensaram logo em mim para transcrevê-la para o grande ecrã. Depois de ter aceitado, arranquei numa investigação histórica, aprofundei o tema desta história, uma aventura humana forte, intensa, sobre a fé, da esperança e da maternidade. Temas complexos que me fizeram crer estar capaz de transformá-lo num filme dramaticamente forte e emocional.

Anne Fontaine na rodagem de As Inocentes. Foto: Jerónimo Presbois

Encontramos em As Inocentes, um breve resumo às “agressões” vividas pela Polónia durante a Segunda Guerra Mundial, visto que foi dos países mais fustigados desse período?

A Polónia foi completamente invadida e devastada durante a Guerra. Foi um país esquecido, este episódio de violações com freiras aconteceu em mais do que uma região na Polónia, muitas delas sucederam durante as invasões alemãs, e aí, muitas foram mortas. Foram ocorrências que muita da nova geração polaca não acreditava que tenha acontecido, e alarmantemente não há muito tempo. Este tipo de situações ainda hoje acontece, graças ao fanatismo que se vive em muitos países, muitos deles vivendo as suas próprias guerras. As violações são ainda consideradas uma arma de guerra muito usado nestes mesmos países.

Ou seja realizou esta história a pensar na actualidade?

De que maneira podemos comportar, falar, se acreditamos em Deus ou não. Como se pode fazer uma acção comuna numa situação de “bullying” como esta? Quando fui ao Vaticano, mostrar o filme, uma pessoa muito próxima do Papa dirigiu a mim considerando que este era um filme aterrador para a Igreja. Ver este tipo de situações, que aconteceram, no ecrã e ter o conhecimento de que este tipo de violência encontra-se presente nos nossos dias. Mais de milhares de monges e freiras estavam em choque, não só porque o filme fala deles, obviamente, mas por esta ocorrência ter marcado espaço na Polónia e ainda hoje existir em diferentes regiões. Eles estavam a chorar no final do visionamento.

Mas apesar disso, este é um filme que de certa forma rebela contra as estruturas hierárquicas religiosas.

Foi a transgressão de uma Ordem que permitiu a ajuda neste filme, sim. Num convento como aquele, não se poderia fazer algo sem primeiro consultar a Madre Superior. Felizmente, esta freira sob esta arriscada decisão vai mudar o destino das outras devotas através de um acto de desobediência. As Inocentes é também um filme sobre a transgressão positiva, ao viver ou deparar com situações como esta, deve-se sobretudo desobedecer, e agir da forma humanamente mais correta.

Tendo em conta que a Festa do Cinema Francês dedicou-lhe este ano uma retrospetiva da sua carreira, tal evento não a faz pensar sobre a sua obra e vida profissional?

Sinceramente, não penso nada em relação a retrospetivas. Neste momento, só me interessa o meu novo filme. Até porque, estava a terminar há uma semana atrás o meu mais recente filme, o qual estava a rodar aqui, em Portugal. Por isso, não tenho a tendência em pensar muito na minha carreira. Também tive uma retrospetiva da minha obra no Vietname, o que foi estranho para mim, porque na altura era a única mulher realizadora naquele país. Agora, uma retrospetiva em Portugal … é engraçado, mas não sei o que quer dizer!

Eu trabalho com a fragilidade, apesar da minha experiência, não trabalho pelo seguro. Procuro constantemente novas histórias, novos temas com que possa transportá-los para o grande ecrã. Muitos vem ter comigo e confrontam-me “mas tu já tens mais de 15 filmes e em tão pouco tempo“. Para fazer um filme, como deve calcular, ocupa muito tempo. Por isso, para mim, se o significado destas retrospectivas é dizerem-me que tenho que pensar, ou repensar, na minha carreira, simplesmente não acredito. Eu não funciono assim, nem é isso que sinto.

Começou a sua carreira como atriz, mas afinal donde surgiu essa paixão de “passar” para o outro lado da câmara? Ser a realizadora que é hoje?

Não fui uma boa atriz, por isso não fiquei muito tempo nas atuações (risos). Julgo que é a experiência de viver através da mente de outra pessoa, da face de outra pessoa, sentimentos que não podemos expressar nós próprios. É aproveitar a nossa imaginação, mais do que na vida real, que por vezes não é tão intensa assim. A realização é como tentar capturar e trabalhar a alma humana, o mistério dos Homens, o que escondem, o que está por detrás. É algo interessante e antropológico também, trabalhar com as complexidades humanas no grande ecrã. Estas mesmas não “vivem” num papel, por isso cabe a nós, realizadores, dar-lhes vida. São estes os motivos que me fazem ligar a esta, o qual não considero um mero trabalho, mas sim, maneira de viver.

Paixões Proibidas

A sua carreira é variada em filmes e géneros. Como é que escolhe o próximo género a trabalhar?

Sou instintiva, eu faço um filme contra o meu anterior, ou seja, passo para um verdadeiramente negro e depois vou trabalhar num filme mais “light“. Obviamente, que escolho cuidadosamente os meus filmes, tento comprometer-me a uma ambiguidade sexual de pessoas que estão perante situações ou sentimentos que não conseguem controlar. O que gosto mesmo é de nunca fazer o mesmo filme ou estilo que já tivesse experimentado. Gosto de descobrir diferentes formas de como fazer um filme. Quando vemos o Coco Chanel ou Paixões Proibidas [2], apercebemos de interligações entre as obras, estão todos conectados, principalmente na maneira como eu trato as personagens. Mas claro, As Inocentes é uma obra bastante distante de Paixões Proibidas, por exemplo, mas são todas histórias acerca de mulheres.

Em relação a esse novo filme que terminou de rodar em Portugal. O que pode dizer sobre ele?

O meu novo filme intitula-se de Marvin, uma semi-biografia que acompanhará um pequeno rapaz dos seus 12 aos 24, oriunda de uma família xenófoba e racista, que reinventa a sua vida de forma radical. A história deste rapaz, uma personagem moderna, termina em Portugal (risos).