Sexta-feira, 29 Março

Entrevista Queer Lisboa 2016: «Antes o Tempo não Acabava»

Os realizadores (Sérgio Andrade à esquerda, Fábio Baldo à direita) e o protagonista, Anderson Tikuna

Retratos de um Brasil desconhecido. Essa é uma das facetas que vêm se revelando na programação do Queer Lisboa, que arranca nesta sexta-feira (16/09) no cinema São Jorge. E este foi um dos aspetos salientados pelo programador Nuno Galopim na apresentação do festival – que em 2015  trouxe o inverno frio e chuvoso do sul do país com Beira-Mar e este ano parte para o extremo oposto ao mostrar o encontro entre a grande cidade e a Floresta Amazónica. Como ponto de interseção entre os filmes estão a confusão entre identidade e a sexualidade.

O C7nema conversou com Fábio Baldo e Sérgio Andrade, realizadores de Antes o Tempo não Acabava, obra que faz parte da competição do festival e será exibida nos dias 18 e 19 no cinema São Jorge. Estreado mundialmente na secção Panorama, no Festival de Berlim, o fim observa as perambulações de um índio (vivido por Anderson Tikuna) entre a periferia de Manaus, a maior cidade da Amazónia, e o seu local de origem – o interior da floresta.

Pontuado pelas variações da banda sonora, que vão de Kraftwerk às pesquisas de sons indígenas do alemão Koch-Grünberg, passando pelas diversas nuances da cinematografia de Yure César, Antes o Tempo não Acabava observa nestes trajetos o processo de amadurecimento de um jovem oscilando entre dois mundos – um conectado ao passado e outro que devora tudo sem olhar para trás…

Na apresentação do festival aqui em Lisboa foi referido que uma das facetas do vosso filme era contribuir para mostrar um Brasil pouco conhecido. Mas a representação cinematográfica da Amazónia e o choque de culturas que vocês retratam não é muito vulgar dentro do vosso próprio país, certo…?

Fábio: Se formos analisar bem essa questão, veremos que não há muitas produções que colocam o homem da região norte como centro das discussões políticas e culturais.

Os eixos de cinema mais fortes hoje no Brasil se concentram em Pernambuco, São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. A maior parte das produções feitas hoje na Amazónia são estrangeiras e repousam um olhar ainda muito preconceituoso acerca do índio e do caboclo. A nossa busca contemplou uma aproximação verdadeira e um cuidado para não reproduzirmos os clichés do olhar do homem branco sobre o tema indígena. Acredito que chegamos num recorte bastante honesto e que é capaz de levantar questões importantes sobre identidade e sexualidade.

Sérgio: Antes o Tempo Não Acabava trata de indígenas que deixaram suas aldeias no interior da Amazónia para viverem numa espécie de zona intermediária em Manaus – onde acabam por serem seres da floresta, pertencendo a uma etnia pura e, ao mesmo tempo, pessoas da cidade, que precisam trabalhar e sobreviver. É uma imigração dentro do próprio país e é ignorada por projetos sociais e educativos. O preconceito contra o índio está em como sua cultura e sua condição social são ignoradas.

O vosso filme conta a história de um índio que vive nos arredores de uma metrópole. Como vocês têm testemunhado esse processo de assimilação? E, de uma maneira mais genérica, ainda existem sobrevivências de comunidades autóctones na região que vocês retratam?

Fábio: Manaus avançou em direção a floresta, construiu seus alicerces em cima de confrontos com tribos indígenas e definiu sua identidade praticamente dando as costas para a floresta. Não há embate cultural maior do que esse no que tange a construção de um imaginário acerca do progresso e seus desdobramentos.

O Brasil hoje carece de políticas públicas e sociais para as questões indígenas. Testemunhamos diariamente o massacre de comunidades indígenas pelas mãos de fazendeiros em terras ainda não demarcadas pelo governo. Há uma luta constante contra essas forças de dominação que remetem a um Brasil ainda em uma lógica colonialista. É bastante desanimador ver nessas comunidades o total descaso dos governantes, forçando os indígenas nas periferias das cidades a se unirem e criarem seus próprios microssistemas políticos para abarcar a negligência das políticas públicas.

Sérgio: Etnias originais ainda persistem em comunidades, nas aldeias, nos interiores e em algumas cidades. Muitas delas, como os Tikuna e Sateré Mawe, são numerosas e resistem em suas culturas, mas a política indigenista do governo falhou muito nos últimos anos, e o que se vê em muitos casos é usurpação de terras, marginalização do indígena, aumento do alcoolismo e do suicídio. 

Sendo vocês cineastas oriundos de um meio urbano, como vocês contrabalançaram aquilo que vos é familiar (a música eletrônica e o rock, por exemplo) com aquilo que é um elemento menos acessível – como os rituais indígenas?

Fábio: Minha relação afetiva com Manaus tem um ponto de partida das experiências e pulsões dos meus filmes anteriores e também da minha ligação com o interior de São Paulo. Sempre me interessei por personagens dicotómicos, que vivem numa espécie de linha transitória de mundos ideologicamente opostos entre espaços rurais e urbanos, tradições e modernidades, e essencialmente dos que partem em busca de expansão e de liberdade.

Nossa ideia nunca foi sobrepor a cultura e as tradições indígenas em detrimento de um ideal romântico da vida moderna ou do homem urbano. Nosso maior interesse dentro do filme era tatear questões que pulsavam no choque entre culturas. Criar um personagem que fosse capaz de transitar entre os dois mundos através da busca de identidade que já não contempla o passado e encontra dificuldade de se adequar à contemporaneidade.

Nossa aproximação com comunidades indígenas nos permitiu entender melhor uma cultura que não é tão familiar para nós, sempre tentando evitar a reprodução dos clichés e preconceitos já vistos em tantas produções de homens brancos jogando seu olhar sobre o índio.

Sérgio: Anderson é um  garoto que cresceu atraído pela tecnologia e pelo desejo de individualização, como é comum perceber nos jovens de hoje em dia. O ponto crucial do filme está justamente nessa dicotomia. Os rituais indígenas funcionaram como um contraponto da própria identidade do personagem, entre passado e presente, entre ser índio e ser urbano.

 

Toda esta confusão em torno da identidade vai dar, por sua vez, à questão da sexualidade, um dos temas importantes do filme.

Fábio: Anderson, personagem de Antes o Tempo não Acabava, vive seu grande conflito com líderes de uma comunidade indígena que já não consegue sustentar suas ideologias – em sua maioria fincadas em tradições – dentro de um mundo que há muito não olha para o passado.

Olhar para o índio de forma humanizada, livrando-se de estereótipos e do exotismo prevalecente, é também criar um corpo capaz de reagir às grandes questões da modernidade, dando espaço para a construção de personagens densos, frágeis, cheios de questionamentos e dualidades. A sexualidade é um elemento que não foge desse conjunto. É uma marca fundamental na construção e na busca da identidade de Anderson. Talvez seja ela que o mova tão fortemente em busca de liberdade e que o faz olhar com olhos críticos para seu passado e de seus ancestrais.

Sérgio: Tivemos muita discussão, em debates, se é comum a homossexualidade entre os índios. Existem mais de 250 diferentes comunidades indígenas no Brasil, cada qual se organiza de forma diferente diante do comportamento de seus membros. Aí vem a pergunta, Anderson tem sua sexualidade dessa forma porque é índio mas vive na cidade? Não, ele é assim porque é uma pessoa amadurecendo.

As sessões em Berlim foram bastante bem acolhidas pelo público. Por que acham que os europeus de alguma forma se conectam com a vossa história?

Fábio: Acredito que o público europeu esteja bastante aberto para novas culturas e novos tipos de olhares vindos de regiões como a do norte do Brasil. É um tipo de tema e de abordagem que dificilmente chega até eles.

Para além disso, o filme carrega algo de universal e que aprofunda as noções da construção e de representação de indivíduos que estão à margem da sociedade. Esse filme cria a possibilidade de enxergarmos o outro da forma mais profunda, de questionar e confrontar o olhar que temos hoje para as questões indígenas e de outras minorias. Acredito que o caminho dessa conexão e interesse seja esse, o da empatia.

Sérgio: O filme traz uma linguagem despida de exotismos ou comiseração ao tratar do assunto indígena, ao mesmo tempo que traz um clima de arthouse que acabou dando-lhe um sabor especial. Mas é, sobretudo, a surpresa acerca dos índios urbanos de Manaus que mais o filme provoca.

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