Sexta-feira, 26 Abril

Thomas Vinterberg: “a política do nosso país para os refugiados é uma vergonha”

Entre os muitos sonhos dos anos 60/70, um deles foi da possibilidade da vida em comunidade – um grupo de pessoas sob um mesmo teto. E é esta utopia de convivência coletiva que Thomas Vinterberg recria em A Comuna, filme que estreia esta semana (25/08) nas salas portuguesas. Por outras palavras, quando Erik (Ulrich Thomsen) herda um enorme casarão, a sua esposa, Anna (Trine Dyrholm), insiste que deviam convidar amigos para viver com eles. Nesta altura podia ser uma boa ideia: alegres, barulhentos, cientes das regras como um bom dinamarquês, nove adultos e duas crianças decidem coabitar e até tomam banho nus num  lago gelado no fundo da casa. 

Até que ponto a coisa se manterá no equilíbrio cabe descobrir no visionamento do novo trabalho do realizador que fundou o movimento Dogma com Lars von Trier (e que também leva aqui algumas alfinetadas!) com outra “celebração” de vida coletiva – A Festa

No Festival de Berlim (fevereiro) para apresentar o seu filme, selecionado na competição principal e que renderia o prémio de Melhor Atriz a Dyrholm, o realizador conversou com o C7nema sobre a contemporaneidade dos temas do seu trabalho, a transitoriedade e a extrema solidão no mundo de hoje. Com a questão dos refugiados no auge (o Urso de Ouro entregue a Fuocoammare demonstraria isso mesmo), sobrou tempo para Vinterberg referir o que designa como a vergonhosa política do seu país em relação aos emigrantes. 

Apesar de lhe ter interessado em outros trabalhos o tema da convivência, neste caso específico o assunto tem uma origem autobiográfica. 

Sim, embora este filme seja mais baseado em sentimentos verdadeiros do que em factos reais. É uma ficção. O que quero dizer é que é um filme pessoal, mas não privado. Foi algo difícil de balancear. Quanto à questão da convivência, sim, há coisas que reaparecem dos meus filmes. Sou fascinado pela família enquanto instituição. Talvez seja fascinado pelo tema do indivíduo contra a comunidade porque também tenha crescido numa. É um bando de pessoas felizes a fazer coisas juntas, às vezes até ilegais, como saltar de uma ravina, ou novas e inexploradas. 

Isso é uma coisa, o assunto da família. Mas depois também me dei conta muito fortemente sobre a transitoriedade de tudo, tudo depois desaparece. Todo humor, toda a energia, o amor entre pessoas… A tua vida de garoto desaparece. Sinto falta disto. Tudo podes substituir isso, mas é um processo brutal, sem sentido mesmo. Assim a transitoriedade passou a ser o tema de muitos dos meus filmes. 

No caso específico A Comuna, o que estou a tentar mostrar, em certo sentido, é que a vida continua, independente de ser uma boa comunidade ou não. As pessoas morrem, se apaixonam, se “desapaixonam” – mas fazem-no em conjunto. Esta é a diferença. Elas vivem num nível diferente do que estamos habituados.

 Há uma carga existencial muito forte…

 É um assunto que costumo tratar com o meu psicanalista. Eu não sei porque tenho medo de morrer. Mas sinto que é uma coisa solitária. Eu pergunto à minha mulher, que estuda teologia. Eu faço a ela estas grandes perguntas. Ela responde mas eu não consigo entender (risos). Bom, os teólogos falam do facto de que a tristeza coexiste com a felicidade. Uma não pode existir sem a outra. Mas podes entrevistá-la sobre o sentido da vida, ela percebe disto mais do que eu (risos). Não sou religioso e não penso que um dia venha a me tornar pois ficou enraizado na minha mente, desde a idade jovem, o princípio de não acreditar. Mas eu gostaria de o fazer.

 Há um trabalho de Lukas Moodyson também sobre o tema da comunidade… (o filme “Bem-Vindos”, de 2000). 

Sim, mas eu não vi. Essencialmente duas coisas podem acontecer nestes casos: ou o outro filme é ótimo, o que é intimidador, ou ser mau e eu tentar superá-lo. Portanto, prefiro começar de um início limpo para contar minha própria história. De resto, tenho imenso respeito por Moodyson. 

Mas a perspetiva é diferente, o seu filme nem sempre inspira o espectador a dizer “ah, eu adoraria viver numa comunidade”. 

Eu queria mostrar algo verdadeiro e tão dramático o quanto possível. Eu posso totalmente recomendar, eu adoraria, mas também há o lado negro. Obviamente o filme também envereda por aí. Mas também queria dizer que há uma opção de partilha – acredito que é uma opção que as pessoas deveriam considerar, pelo menos no nosso país. Nunca houve tanta gente vivendo sozinha, nunca houve tanta solidão. Não sei se é possível medi-la, mas se há tanta gente vivendo sozinha, por que é que não vivem juntas? Mas não faço julgamentos nem transmito mensagens. Acho que seria melhor que as pessoas vivessem em casa juntos. É muito divertido. Também há muito dor, mas é vida não apenas solidão. 

Neste caso partiu de uma peça de sua autoria. De forma geral, como funciona o seu método de construção de um projeto?

Começo por tentar manter a ideia simples e depois acabo por abandalhar tudo (risos). Eu tive um professor que, uma vez numa conversa comigo e outro colega, disse que eu começava muito sólido, muito certo e depois a minha especialidade era baralhar tudo (risos). É assim que trabalho. Ao outro ele disse o oposto, que ele iniciava muito certinho, mas depois precisava de inserir algum elemento sexy, abandalhado ou perverso para ficar menos chato. 

Uma história simples pode se tornar chata e previsível enquanto a vida é uma anarquia. Isto é o mais interessante. Os seres humanos têm muitos comportamentos irracionais, dizem coisas como ‘agora eu vou’ e sentam-se e ficam na conversa mais de uma hora (risos). Não faz sentido, mas é como fazemos. Ou podemos ir a um funeral e rir. A vida não faz sentido e fico entediado com filmes que fazem sentido. 

É como o Lars von Trier. É uma contradição, ele adora jogar com os media, dizer que é avant-garde, que explora a forma. É onde ele começa – e as personagens e atores só entram algures lá para a frente. Eu demorei um bocado a descobrir que não sou este tipo de realizador. Há pessoas que esperam que eu explore os media, mas eu não o faço. Eu quero explorar a natureza humana. 

Por falar em Lars von Trier, ele também já afirmou ter crescido numa comunidade… 

Não acredito (risos). Imagino que ele queria ter crescido. Ele estava muito entusiasmado com a ideia de fazer um filme sobre isso e, na verdade, constantemente tentou criar comunidades à volta dele mesmo. O único senão é que, se houver igualdade, isto torna-se um problema. 

Como assim? 

Bom, não quero ir por aí (risos). Podes fazer parte, mas não lhe fazer sombra ou ele fica violento (risos). Eu gosto muito dele, somos amigos, mas eu não viveria numa comunidade com ele. Faz dez anos que deixamos de colaborar. Eu sinto que desde o “Dear Wendy” nós não conseguiríamos nos aproximar mais. Ele escreveu e eu dirigi e eu achei que era o momento de acabar com a parceria. Podes chamar de divórcio, mas amigável. 

Por falar em comunidades e tolerância, neste momento vivemos na Europa a crise dos refugiados… 

Eu tenho vergonha do meu país. Melhor dizendo, tenho vergonha dos representantes do meu país. Eles comportam-se vilmente, desrespeitosamente, desumanamente. A Dinamarca tem estado a transmitir ao mundo uma nova imagem egocêntrica, fechada, cínica. Nós temos um grande grupo de pessoas, uma grande cultura, é terrível passarmos esta ideia. 

Nós temos duas diferentes ilhas, duas linhas políticas, no entanto – o mundo dos políticos e da população. Durante muitos anos não houve conexão. Quando foi a altura da entrada na União Europeia, por exemplo, todos os políticos acharam que era natural fazer parte. A população, no entanto, votou contra! Surpreendente e inaceitável, sem dúvida. 

Agora, em relação a esta hostilidade contra os refugiados, passa-se o contrário. Os políticos não os querem, mas a população tenta arranjar comida, leva os de um lado para o outro de carro – e é a vasta maioria. Nem sequer é legal, mas as pessoas fazem. Parece existir um grande fosso entre os políticos e os eleitores. O nosso governo chegou a pôr anúncios nos jornais no Irão a dizer aos refugiados ‘não venham para o nosso país, não há nada para vocês para lá’. Um comportamento vergonhoso. 

Você faria um filme sobre isso? 

Não tenho a certeza. O problema é que seria politicamente correto e ninguém poderia dizer nada contra. Isto eliminaria o sentido de risco. 

Por falar em novos projetos, está a desenvolver um novo em inglês – sobre a tragédia do Kursk*… 

Sim, neste momento estou tentando criar personagens, momentos e situações que fiquem com o espectador depois da projeção, que tenham muita vida. Quero torná-lo rico, independente de qualquer outro factor. Isto é o mais importante para mim, neste momento. 

Costuma alternar entre projetos dinamarqueses e internacionais… 

Eu tenho os meus filmes dinamarqueses – os quais escrevo eu mesmo. O próximo será uma “celebração” do álcool. Na verdade, vou abordar o tema dos vícios, não da droga em si – por que é um vício aceite. 

Fora isso eu vivo num mundo pequeno e preciso de sair ou fico maluco! Eu adoro conhecer vocês, jornalistas, por exemplo. Então eu faço filmes fora do país, de vez em quando, até porque continuam a me enviar argumentos e às vezes aparecem coisas muito boas.

*Obra sobre o submarino russo que afundou no mar de Barents em 2000. Quatro meses depois desta entrevista a Variety anunciou que Colin Firth estaria no projeto – para o qual já estava confirmado o belga Matthias Schoenaerts.

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