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Marcos Jorge: “Os brasileiros estão quotidianamente expostos à violência”

Realizador de um dos mais importantes filmes brasileiros do século XXI (Estômago, de 2007), Marcos Jorge traz com Mundo Cão um thriller visceral numa história onde se conjugam os twists e peripécias com um estado permanente de tensão psicológica. O resultado é um comentário brutal sobre a violência gratuita a que os habitantes das grandes cidades brasileiras estão sujeitas.

A história gira em torno de um pacata família da periferia de São Paulo, o casal vivido por Babu Santana e Adriana Esteves e seus dois filhos. Um incidente fortuito coloca-os na mira de um arrepiante vilão vivido à perfeição por Lázaro Ramos.

O filme tem um argumento e direção de atores irrepreensível, demonstrando toda a nobreza, a complexidade e o prazer que se podem extrair de uma história bem contada – tão maltratada pelo cinema “mainstream” em geral e tão desprezada pelos “autores”.

Nessa conversa com C7nema, Marcos Jorge falou sobre esta construção peça por peça e, em termos de conteúdo, sobre a sua inspiração, que vem do dramático problema da violência nas metrópoles do Brasil.

O filme faz parte da competição da competição do FESTin e a sessão decorre nesta sexta-feira (06/05) no cinema São Jorge, em Lisboa.

Quando começou a delinear o projeto pensou primeiro numa história em jeito de thriller ou num possível enquadramento filosófico/social para esta história – como, por exemplo, “quero fazer um filme sobre a irrupção da violência gratuita no universo familiar de uma grande cidade“?

É curioso como sua pergunta acerta praticamente na “mosca” quando especula o que pode ter-me conduzido a fazer o Mundo Cão. De facto, este filme nasceu de meu desejo de discutir  o tema da “ética” no universo da classe média-baixa brasileira, classe que me fascina por ser a que concentra as maiores mudanças e onde pode ser visto com mais clareza o país em que vivo. O meu ponto de partida foi justamente imaginar o que aconteceria com uma família típica às voltas com uma irrupção inesperada de violência gratuita em seu meio.

Definir o gênero a que o filme pertenceria foi uma consequência quase natural do desenvolvimento da história, embora devo confessar que, quando comecei o projeto, eu estava mesmo querendo experimentar o “thriller“, que é para mim um dos gêneros cinematográficos mais férteis e interessantes.

É um filme que trafega sempre numa linha de tensão alta, com poucas pausas para respirar. Como pensou na gestão emocional da história em termos de efeito no espectador?

Mundo Cão, como dizia, tem como tema a violência a que todos os brasileiros encontram-se quotidianamente expostos, e as tristes sensações de impotência e vulnerabilidade geradas por esta exposição, que são hoje problemas crônicos no nosso país. Mas sempre achei que um filme que tematiza a violência não precisa necessariamente ser violento, pois o que me interessa não é a sua representação, mas sua gênese e desenvolvimento.

Com esta renúncia de cenas violentas não quis, no entanto, abdicar de fazer um filme intenso e impactante, pois penso que cenas fortes sejam fundamentais para impressionar o espectador e engajá-lo emotivamente na trama. Então, Mundo Cão já nasceu como um projeto de suspense “psicológico“. E, ao escrever o argumento, eu e o Lusa Silvestre fomos fundo nesta proposta, o que nos deixou com um filme, como você bem define, com uma linha de tensão muito alta.

Mas, mais ainda do que tensa, a história do Mundo Cão é muito “dura“, uma história em que situações tristes e trágicas se sucedem ininterruptamente. É uma história que poderia resultar quase intolerável no ecrã se fosse contada apostando somente em sua carga dramática, com “mão pesada“.

Desde o início eu sabia que deveria “temperar” o drama e o suspense com toques de ironia e até mesmo de comédia para que o filme conseguisse chegar até seu público. Mas, mais do que isso, eu pretendia transformar esse “tempero“, essa mistura, na essência mesmo da linguagem do filme. Mas, como é sabido, o suspense e o humor são climas muito antagônicos, de difícil combinação. Sempre tive presente que, ao apostar nesta mistura, eu estava arriscando a que um clima invalidasse ou enfraquecesse o outro e que o filme ficasse plano ou simplesmente ruim.

Então, respondendo finalmente a sua pergunta, a gestão emocional da história ao nível do espectador foi uma preocupação constante para mim durante todas as fases da realização do filme – seja no argumento, que busca alternar cenas engraçadas com cenas tensas, e às vezes mistura os dois climas na mesma cena, nos ensaios, quando estes climas foram se consolidando na ação e nas falas dos atores e foram ganhando ritmo, e nas filmagens, onde estes ritmos efetivamente se estabeleceram. Mas foi, sobretudo, na montagem que o equilíbrio entre os climas foi meticulosamente estudado e testado. Mas até mesmo na finalização este objetivo foi buscado, pois a banda sonorafoi pensada para sublinhar estes climas.

Mesmo assim, confesso que só fui me convencer que a coisa toda funcionava (e um pouco me tranquilizar) quando projetei o filme pela primeira vez para uma plateia real, no Festival do Rio, e senti a vibração das pessoas durante a sessão. Foi mágico.

O argumento é  muito preciso e com alguns pormenores preciosos, como o do poço no quintal ou da camisola do Palmeiras (clube de futebol do Brasil). Como foi o processo de escrita? Você e Lusa Silvestre sofreram muito para encaixar as “peças” todas?

Penso que ter um bom argumento seja absolutamente indispensável para se fazer um bom filme. E para isso é necessário se trabalhar muito nele, nunca se contentar com a primeira ideia que surge. Neste sentido eu sou muito parecido com o Lusa, e de facto nos damos muito bem escrevendo juntos.

O argumento deste filme passou por muitos tratamentos e a história e os personagens foram evoluindo gradativamente, à medida que pensávamos neles. No início, tínhamos somente uma breve “story-line” (o personagem do Santana, a briga por motivos profissionais, o mal-entendido, as vinganças) e no decorrer do tempo efetivamente nos esforçamos muito para que a história ganhasse sentido e profundidade. E para que as “peças” fossem surgindo e sendo coerentemente encaixadas.

Sabíamos também que, em se tratando de um suspense, além de manter altas a tensão e a excitação da história, seria importante quebrar as expectativas do espectador, para que o filme não desandasse no óbvio. Só que um grande número de reviravoltas implica também no risco do filme descolar do plausível e do verossímil, coisa que nós tentamos a todo custo evitar, e para isso tivemos que ousar em relação ao destino de alguns personagens.

Então, as muitas reviravoltas que estão no filme foram cuidadosamente pensadas e arduamente trabalhadas. E esses detalhes que você observou foram surgindo naturalmente e  sendo incorporados organicamente à trama, dando um gostinho especial para o espectador atento, que sempre procuramos estimular e agradar em nosso argumentos.

Seu cinema não obedece a fórmulas específicas, mas ao mesmo tempo está fortemente conectado com o storytelling. Essa é a sua principal concepção de cinema, ou seja, que um filme tem de contar uma história e que a técnica tem que ser subordinada a ela?

Não sei se esta sua afirmação resume a minha principal concepção de cinema, mas certamente sintetiza muito bem uma das características fundamentais de meu trabalho. Eu acredito mesmo que a técnica, em todas as fases e departamentos do fazer cinematográfico, deve estar subordinada ao storytelling, ao que se está contando no filme. E, como você bem notou, não tenho fórmulas específicas para fazer os meus filmes, mas derivo o estilo deles de suas histórias.

Gosto de pensar que cada filme é um universo, e o melhor jeito de se contar uma determinada história é aquele que melhor se adequa à história em si. Como minhas histórias são calcadas na realidade, é natural que eu busque “verdade” e realismo nos cenários, nas situações e, sobretudo, no trabalho dos atores. Mas minhas histórias têm também um forte sentido metafórico, em alguns casos fabular e, portanto, eu me sinto à vontade para, se necessário, incorporar nelas a estranheza e a “esquisitice”. Aliás, creio ser possível identificar que uma outra característica de meu cinema é a mistura de gêneros e, de certa forma, estilos.

Alguns realizadores brasileiros têm tido experiências em Hollywood, embora com dificuldades de adaptação a um sistema onde a figura central é a do produtor. Consegue se rever dando esse passo e trabalhando dentro deste sistema?

Embora meu cinema até agora tenha tido características marcadamente “autorais” (de facto, eu também escrevi, colaborando com outras pessoas, os argumentos de todos os quatro longas que dirigi) eu me sentiria perfeitamente à vontade trabalhando dentro de um sistema em que a figura central e propulsora de um filme é a do produtor.

De facto, eu na verdade “adoraria” receber, de outra pessoa, um argumento bom e me dedicar somente a filmá-lo. Só não o fiz ainda porque isso é uma coisa que acontece pouco no cinema brasileiro, onde o realizador quase sempre é o motor principal de um projeto.

Outra coisa que eu adoraria fazer é escrever para outros realizadores filmarem. Tenho feito alguns doctoringsrecentemente e estou investindo também nesta direção profissional.

Já tem novos projetos?

Fazer cinema no Brasil é, infelizmente, uma atividade muito lenta e burocratizada, um trabalho que demanda muito tempo para se concretizar. Em virtude disso, evito falar muito nos meus próximos projetos pois raramente é possível fazer previsões realistas de quando seus frutos estarão disponíveis para o público. Então, só posso adiantar que estou trabalhando em dois projetos de filmes neste momento, e os assuntos e os gêneros são bem variados.