Quarta-feira, 24 Abril

«Os portugueses cultos não se revêm no seu cinema»: entrevista a Vicente Alves do Ó

 

O sucesso de Florbela não ajudou Vicente Alves do Ó a obter financiamento para o seu próximo projeto e, depois de quatro anos de hiato, ele retorna com um filme pensado em outros moldes. O Amor É Lindo…Porque Sim!, estreado nas salas portuguesas na última quinta-feira, foi construído de forma quase artesanal, sem uma verdadeira montagem financeira e pensado para chegar ao grande público com humor sem recorrer ao que o realizador define como os “c*s e mamas” da comédia brejeira que tem assolado as salas.

A trama narra os percalços de Amélia (a novata Inês Patrício), abandonada pelo namorado e desempregada. A sua sorte começa a melhorar quando arranja trabalho num restaurante e descobre seu talento como cantora de fado, para além de lidar com novos pretendentes. Maria Rueff, a principal das atrizes profissionais integradas no elenco de atores vindos diretos da escola Act, é Gigi, a mãe de Amélia.

Nesta conversa com o C7nema, Alves do Ó falou sobre a decisão de fazer uma comédia e os filmes cómicos no cenário atual, culminando numa longa análise sobre o cinema em Portugal – onde diz que as pessoas cultas não se revêm no cinema de autor português e que é o “público do meio”, gente entre o hermetismo e o brejeiro, “que mantém as salas abertas”.

Em relação à origem do projeto, ele surgiu na escola de atores Act. A ideia foi sua?

Sim, eu dou aulas lá dois meses por ano de prática de plateau e os finalistas têm possibilidades de fazer cenas com textos já escritos para ter uma experiência de cinema. Fiz isso durante dois anos e, no terceiro, disse à direção: ‘apetece-me fazer um filme!’ Pensaram que eu era maluco (risos). A ideia era que, já que se gasta tanta energia a fazer curtas-metragens para consumo interno, porque não tentarmos algo maior? Eu escrevo um argumento e tentamos arranjar meios. Falamos com as pessoas, com a NÓS e a aderência foi total.

Desde o início ele foi pensado como comédia?

Sim e, acrescento, uma comédia romântica. Era um grande desafio para mim, vinha de dois dramas e, de repente, apareço com uma comédia. Gosto de um certo perigo, de experimentar e tinha essa ideia há muito tempo. Me entusiasmava também a ideia de fazer algo para essa geração dos 20 anos, que se revê pouco no cinema português e, mesmo o humor que se tem feito, era para outro tipo de gente. Eu sabia que tinha que ser uma coisa apelativa e uma comédia romântica seria ideal para eles, que são jovens. Tinha vontade de chegar às salas também.

Já viu que tinha atores em potencial no trabalho que fazia? E na hora de dar o salto, aguentaram-se bem…?

Sim, essa é uma turma muito boa. Eu achava que eles tinham potencial e que conseguia que eles brilhassem no ecrã. Não era difícil. Mas claro que tiveram muito medo! Aquilo era uma pilha de nervos no set e acho que só lhes caiu a ficha na antestreia. . É uma coisa esmagadora, de repente são confrontados com uma coisa que sai do âmbito do curso e voa!

E foi bom para eles para perceber como o mercado funciona. Já um ano se passou um ano e estão todos no mercado de trabalho. Quando o filme está a sair já não são alunos, são profissionais. E um cartão de visitas tremendo. Acho que o processo representa uma transgressão a esse sistema terrível onde a pessoa candidata-se a um estágio e já pedem um currículo. Como podem criar currículo sem oportunidade de trabalhar?

Quem ficou com a maior responsabilidade foi a atriz principal. Quando é que pensou que a Inês Patrício era ideal para o papel?

A Inês foi minha aluna no meu primeiro ano, foi excelente. Ela é muito Amélia, ela vinha as aulas e ao mesmo tempo trabalhava em mil e uma coisas para pagar o curso, se sustentar. Portanto, quando pego no argumento, apesar de se basear numa sinopse que eu já tinha escrito há dez anos vi logo que ela era ideal, tinha aquela energia que eu precisava, um ar contemporâneo, como as miúdas de hoje em Lisboa, desenrascadas e ativas.

E ela portou-se lindamente! Muita nervosa, como podes imaginar, mas nós tratamos de acarinha-la, de lhe mostrar que ela tinha uma grande oportunidade e tinha que “dar ao litro”, como se costuma dizer (risos).

Como a Maria Rueff entrou no projeto?

A produtora achou que podíamos mandar à Maria. Era um bom teste para mim, se ela recusasse era porque a comédia tinha falhado! Claro que a recusa poderia ser por outras razões. Mas mandamos o guião e no dia seguinte ela disse que queria fazer. Foi de uma generosidade enorme, deu-se bem com eles, trabalhou com eles, integrou-se completamente, deu sugestões, ela foi maravilhosa. Aprendi porque ela traz a escola da comédia. 

Existe um padrão de comédia romântica ditado por Hollywood. Teve receio de fazer algo muito cliché?

Confesso que não me preocupei com isso. O que eu me preocupei ao máximo foi que ela não fosse pretensiosa, fosse muito honesta e que acima de tudo refletisse muito não só a sociedade lisboeta, portuguesa, que tocasse a brincar em coisas sérias. Eu me preocupei muito que, mesmo sendo uma comédia, eles fossem humanos, não fossem bonecos, não fossem desumanizados. Essa era a minha preocupação máxima… mesmo se houver um “bolo na cara”, uma pessoa que cai, um humor físico, de situação, choque de gerações ou nonsense. Escrevo de um ponto de vista que tem a ver com a minha experiencia, com a forma como olho para a vida.

Como é que vê o filme dentro do contexto cinematográfico português? Há sempre pouca gente a tentar fazer aquele “cinema do meio”, algo entre o hermético e o brejeiro.

Somos poucos e sofremos muito com isso, somos atacados dos dois lados. Eu acho que faz muita falta esse cinema de meio, o público destas obras é que mantém as salas abertas e, infelizmente, em Portugal fazem-se poucos filmes para essas pessoas. Não sou é apologista de um cinema brejeiro que faz imensas piscadelas ao que eu chamo de “c*s e mamas”, porque acho que o público é mais inteligente do que isso…

Vê-se que evitou isso…

Evitei completamente. Não é por aí. Posso fazer um filme bem-disposto onde as pessoas podem estar a rir do princípio ao fim sem recorrer a estes artifícios. Como também acho que existe um cinema mais fechado, mais hermético, que se encerra demasiado até no momento em que é para ser vendido ao público. É uma guerra em Portugal que dura 30 anos e espero que acabe em breve porque se não o cinema em Portugal morre.

Há aqui uma coisa que as pessoas se esquecem muito: alguém tem que pagar para as salas de cinema estarem abertas. E as pessoas falam mal do cinema americano mas é ele que mantém as salas abertas. Não é certamente o cinema europeu ou português.

Há algum tempo houve uma polémica que me irritou bastante que foi quando os cinemas King (o King Triplex, em Lisboa) fecharam. Os meus amigos intelectuais estavam todos “passados” porque o Paulo Branco tinha fechado as salas. Eu frequentei-as desde os anos 90, tinha 20 anos. Cada vez fui lá menos – comecei a ir a outros sítios e ver filmes na net como toda a gente, ‘bora’ ser honesto. E tinha uma série de pessoas ofendidíssimas porque o King tinha fechado. A minha pergunta para todas elas era: ‘Qual a última vez que tu lá foste’? O Paulo Branco é alguma espécie de Estado que tem que está a perder dinheiro mas tem que manter aquilo só para que tu saibas que lá está?

Ao mesmo tempo, não se pode obrigar as pessoas a ver o hermético porque, se não forem, são burras. Eu dou sempre o mesmo exemplo: há milhares de pessoas em Portugal que são capazes de dar 20 euros por um livro do Saramago, do Lobo-Antunes ou do Walter Hugo Mãe, mas não dão seis euros para ver os filmes portugueses que andam por aí. Essas pessoas são estúpidas? Elas têm capacidade de ler estes autores mas são burras? Elas não têm é nada que as identifique com esse cinema.

A cinematografia francesa, que é sempre usada como referência, vai a todo o lado. Eles dão dinheiro ao (Michael) Haneke como dão ao Asterix ou ao (André) Techiné, que é um cineasta ‘do meio’. Eles vão a todo o lado. É uma cinematografia completa. Amor É Lindo… Porque Sim! nunca seria aprovado pelo ICA, pois nunca dariam dinheiro para fazer uma comédia romântica.

A ideia é que o mercado tem que os pagar, só que ele não está feito para acreditar em cinema. A relação do meio cinematográfico com o público é de um enorme desprezo. Isto é um negócio em todas as frentes: quando estás a receber dinheiro do ICA, também é um negócio. “Ah, uma percentagem vem da publicidade da RTP“. E quem é que faz publicidade na RTP? São as empresas. O dinheiro que chega do ICA às tuas mãos não é lavado e abençoado por Nossa Senhora. É dinheiro que vem do mercado. Parece que o dinheiro do ICA é abençoado e o resto do dinheiro é sujo.

 

 

 

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