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Entrevista com Miguel Gomes: «É como se tivesse feito o Star Wars de uma só vez»

O realizador português Miguel Gomes é hoje uma espécie de marajá em Cannes. Convenhamos que a sua trilogia de As Mil e Uma Noites não ficam muito atrás de um Star Wars à portuguesa, como o próprio confirmou na nossa entrevista. Uma conversa vivida num turbilhão de emoções, com a apresentação de três filmes em Cannes, a ansiedade e depois a explosão benfiquista pela vitória do campeonato e ainda uma mega festa nos jardins do Casino Palm Beach onde houve até direito a mergulhos na piscina ao ar livre.

Foi assim que vivemos com o realizador a promoção em Cannes do seu projeto, considerado por muitos como um dos mais interessante de todas as seções. Durante um ano de rodagem vive-se o drama do desemprego e do insólito lusitano num momento em que somos governado pela Troika em relatos narrados por uma Xerazade interpretada por Crista Alfaiate. A partilha com os portugueses destas Mil e Uma Noites de Miguel Gomes está agendada o final de julho início de agosto.

Não são todos os realizadores que vêm aqui a Cannes que se podem orgulhar de poder mostrar não um, não dois, mas três filmes. Já vimos o primeiro, passa agora o segundo…

Não, o que temos de ver hoje é o Benfica (refere no domingo passado, dia 17, a escassas horas antes do jogo entre Benfica Vitória de Guimarães que daria o título ao Benfica).

Isso significa que vai parar com as entrevistas a essa hora?

Sim, tinham dito que tinham previsto entrevistas até às sete da noite, mas eu disse que queria o mais possível junto das seis para poder ir ver o Benfica. Aliás, devo dizer uma coisa: há três anos quando estava aqui em Cannes, como presidente do júri da Semana da Crítica, apanhei aqui o Benfica com o Chelsea, no final da Liga Europa e não deu sorte. Portanto, espero que a história não se repita, e que o Benfica hoje possa ser campeão.

Alguma vez te passou pela cabeça juntar o futebol e o cinema?

Sabes, durante o período em que fiz este filme, apanhei a morte do Eusébio. Vinha de uma rodagem da última história do primeiro filme, do banho do 1º de janeiro dos magníficos, e o Eusébio tinha acabado de morrer. Vinhamos de Aveiro e nessa noite ia ser o funeral. Como havia aquela loucura toda em Lisboa, ainda pensei em mobilizar toda a equipa e filmarmos esses momentos. Depois teria de arranjar uma história para incluir a morte do Eusébio.

Foste jornalista e usaste uma equipa de jornalistas para desenvolver este projeto. Podes explicar porquê?

A ideia era incluir jornalistas que iriam filtrar a atualidade durante doze meses. Iam filtrando assuntos que nos proporiam, Depois eu e os argumentistas escolhiamos os assuntos mais relevantes. Independentemente da relevância da história. Poderia ser um assunto simples, ou abertura do telejornal. Para as histórias da Xerezade. Depois de escolhidos partiam para o terreno e a partir disso procurávamos fazer ficções.

Por exemplo, soubemos pela nossa equipa de jornalistas que o representante da Troika falou uma única vez durante todas as reuniões. Só houve um único dia em que ele falou. Todas as pessoas que participavam nas reuniões comentavam isso. Por isso achamos que seria bom dar um protagonismo a esse personagem no episódio dos ‘Homens do Pau Feito”, em que há um dos elementos da Troika que não fala. No filme, as personagens comentam isso.

Isso como a equipa que foi a Resende conhecer a dona do galo que foi posto em tribunal por cantar mais cedo do que deveria. Um tema que foi investigado pelos jornalistas e que permitiu que conhecessemos também a senhora, a Fernanda, e que a tivéssemos posto como protagonista da história do galo e do fogo.

Já agora, de onde surgiu essa ideia do ‘pau feito’?

Eu explico. Todos os dias, o período da manhã da nossa equipa de jornalistas era reservado para a leitura de jornais daquele dia. Funcionava quase como uma espécie de gabinete de imprensa e uma das coisas que vimos foi um anúncio de um afrodisíaco. O que fizemos foi pegar no texto anúncio e transformá-lo em diálogo. Temos vários livros de artigos, recortes, anúncios…

É a partir daí que partes para a ficção?

Sim, é a partir daí que vamos inventar a realidade através da ficção. Mas esse é o trabalho de quem constrói ficções. Em cinema ou em literatura, presumo. A ideia era muito clara. Trabalhar a partir de coisas que estavam a acontecer ou apareciam nos jornais. Depois cruzávamos isso com a nossa imaginação.

Não me digas que o formato da ideia deste projeto veio de algo semelhante?…

A ideia do projeto acabou por vir de um outro projeto que estava para desenvolver no México. E que não tem nada a ver com este.

Já depois de Berlim?

Sim, já depois do Tabu. Mas já durante o Tabu pensávamos em fazer o filme seguinte. O que aconteceu foi que a realidade em Portugal foi demasiado impositiva. Filmar em Portugal numa altura em que se passava algo tão grave, impunha-se testemunhar isso para alguém que faz filmes e não virar as costas.

Isto de uma perspetiva algures entre o documentário e a ficção, não?

Sim, a mim o que me interessa são as trocas entre o imaginário e a realidade. Acho que o real, o mundo em que vivemos, só pode estar completo se existir ao mesmo tempo a realidade e o imaginário das pessoas. Uma espécie de imaginário selvagem. No livro das Mil e Uma Noites, Xerazade tem de contar histórias ao rei na eminência de perder a cabeça. O facto de serem ficções tão delirantes, com génios e lâmpadas, achei que havia uma relação entre o surrealismo que eu via de muitas histórias que se estavam a passar em Portugal. Apesar de pareceram coisas opostas havia algo que as unia.

Onde foste desencantar a Crista para a Xerazade?

A Crista Alfaiate é uma atriz de teatro, mas que já fez alguns filmes: o do João Nicolau (A Espada e a Rosa, em 2009); filmou com o Manuel Mozos (4 Copas, em 2005). Acho que a Crista Alfaiate é uma grande atriz, uma das melhores da geração dela. Foi um prazer trabalhar com ela. Apesar de ter sido muito duro, porque foi contratada antes de saber o que iria fazer como Xerazade.

O que podes dizer em relação ao outros dois volumes?

As coisas vão mudar imenso. O novo filme vai ter uma nova lógica, um tom muito diferente. Antes deste filme, fiz sempre filmes em duas partes. Eu sentia que tanto em Tabu e Aquele Querido Mês de Agosto há sempre um momento em que o filme se parte e nasce outro, como que em reposta à outra parte. Neste caso, são três filmes, como que três partes de uma muito longa metragem. Têm lógicas diferentes. A segunda parte vais ser muito mais negra e mais trágica. E o terceiro vai ser uma resposta a esse lado negro. E vai ser uma resposta a todos. Chama-se o Encantado. Vai ser o mais psicadélico. É o mais difícil de descrever. Acho que é o filme mais diferente de qualquer um que tenha feito.

Já não és um homem estranho a Cannes, pois foi aqui que começaste. Mas agora, és uma espécie de marajá, ao chegar com este projeto megalómano. O que significa para tu estar aqui neste festival?

Claro que estou muito satisfeito por estar aqui. Depois por ter acabado este filme. É como se tivesse feito o Star Wars de uma só vez. As Mil e Uma Noites são um único filme. Mas estou muito contente por o filme estar a ser bem recebido.

Quando subiste ao palco para a presentar o filme despediste-te dizendo “e agora, let’s rock and rol”. Até que ponto esse lado pop do teu cinema

O filme não é nada diplomático. Talvez seja esse o lado mais selvagem, mais rock and roll, pois não quer ser diplomático. Mas também não quer ser militante e histérico. Acho que o filme não é isso. Mas não tem qualquer problema em partir os pratos da cozinha.

Nesse sentido como enquadras o lado mais político do filme e até a própria crise do cinema? Achas que deveríamos ter também uma Troika para o recuperar?

Acho que existem neste momento problemas no cinema em Portugal que têm a ver com a lei, como foi escrita, e com lógicas cada vez mais mercantilistas de escolher filmes. Isso este ano vai ser muito visível em termos de escolhas de projetos para o cinema. Como existe uma lei do cinema que faz com que o financiamento provenha de empresas que são tachadas e não do orçamento geral do estado. Muitos jornalistas estrangeiros querem perceber a crise do cinema em Portugal e eu falo-lhes desta lei e das contas do orçamento de Estado, que protege um pouco o cinema. Mas acho que há coisas muito mais graves na sociedade portuguesa do que no cinema.

Por falar em orçamento, quando custou o filme?

Vais ter de perguntar ao produtor, o Luís Urbano, pois eu perdi-me nas contas, mas acho que foi mais de três milhões. Três milhões e meio, talvez. Donde a participação portuguesa terá sido 30%. Os outros 70% vieram de organismos europeus que são equivalentes ao nosso ICA ou à RTP. Tudo isso parte de dinheiros públicos. Portanto, todo o cinema europeu é subsidiado. Se não não teríamos tido Fellini ou outro quaisquer. Tudo isso seria sido impossível.

Para quem acha que o Miguel Gomes é um crítico de cinema, um intelectual, achas que essa ideia é desmontável?

É verdade que fui crítico de cinema, mas parece-se que isso não tem de ser um estigma social. Sou um realizador de cinema, faço os filmes que acredito que é possível fazer. Não me sinto intelectual, mas também não tenho desprezo por intelectuais.

E depois de Cannes, o que se segue?

Talvez retomar aquele filme do México. Mas primeiro descansar, porque foram dois anos em que praticamente trabalhei sete dias por semana. No próprio dia em que vim para aqui, estava em Paris a acabar a última cópia e a fazer a última correção de cor no estúdio.

E agora vou estar cheio de pena porque te vais fartar de viajar a promover o filme em todos os festivais…

Às vezes não é assim tão aliciante, porque não saímos do átrio do hotel porque temos o compromisso de promover o filme e dar entrevistas todo o dia.