Quinta-feira, 28 Março

Entrevista com Ricardo Pretti, realizador de «O Rio nos Pertence»

Com exibição prevista para esta terça-feira (14/04), no cinema São Jorge, no âmbito do Festival Itinerante em Língua Portuguesa (FESTin), este denso e atmosférico mergulho no sonho traz Leandra Leal em grande forma e um Rio de Janeiro distante dos cartões postais. O C7nema conversou com o realizador Ricardo Pretti, que não gosta da expressão “cinema de arte” mas, com extrema precisão, defende que “sempre existirá um foco de resistência de pessoas que querem fazer e assistir filmes que se abrem para o desconhecido”.

O filme é fortemente marcado por uma experiência sensorial, de atmosfera e ambientação, trabalhando elementos como claustrofobia e paranoia, mas não excluindo totalmente a narrativa de uma história. Como foi a dosagem, o equilíbrio, destas duas perspetivas?

Sua pergunta é certeira. O grande desafio que tive foi de trazer a sensação que o filme constrói uma narrativa linear quando, de facto, ele estava obedecendo a uma irracionalidade onírica. O sonho muitas vezes é aquilo que parece fazer sentido mas ao acordar se torna absurdo. Eu quis trazer isso ao filme, ou seja, se o espectador parar pra pensar em retrospecto o que aconteceu com Marina ao longo do filme, ele vai se deparar com uma ausência de sentido narrativo total.

Nesse sentido o filme está muito mais próximo de uma experiência surrealista do que do cinema de gênero (no caso, o suspense e o terror psicológico). Por outro lado tentei trazer um pouco do cinema de Jacques Tourneur com Val Lewton que são filmes sobre realidades assombradas mergulhadas em atmosferas sombrias e forças ocultas. O meu filme se constrói dentro de uma série de convenções e códigos do cinema de gênero, mais marcadamente narrativo (e nem por isso menos misterioso). Até hoje me pergunto se a dosagem dessas duas forças foi bem sucedida. Acho que em algum momento o filme deveria ter se explicado menos, se tornado mais elíptico e estranho, pois a ideia era tratar de um assunto que não pode ser verbalizado: o suicidio.

Esse Rio de Janeiro nada tem de cartão postal – antes pelo contrário, é um elemento perturbador, uma espécie de vilão invisível e omnipresente.

Já me disseram que o filme serve como anti-propaganda do Rio de Janeiro. Essa ideia não me desagrada, uma vez que o turismo se tornou uma banalização do contato dos homens com as cidades (Jean Vigo já disse isso, há 85 anos, em A Propos de Nice). Mas o que me interessava nesse filme era lidar com a classe alta, o filme joga com a ideia de maldição, que é o cartão postal que Marina recebe, essa maldição se espalha e eventualmente pode matar a todos.

No Rio de Janeiro existe uma ditadura da felicidade, qualquer manifestação de tristeza é recebida com ojeriza pelo carioca. Tentei mostrar que é possível olhar pro Rio e sentir coisas mais obscuras e frias. As pedras do Rio carregam energias arcaicas e ocultas, elas parecem estar imóveis. Porém elas respiram e são testemunhas de nossa história. Pra mim essas pedras são como o Monument Valley para John Ford. ou o Morro Dois Irmãos para Julio Bressane.

Para além do filme em si, existe em redor dele uma perspetiva interessante em termos de produção – uma vez que faz parte de um projeto que previu a rodagem de três filmes com a mesma equipe, locais e datas… Como é que funcionou isso? Acha que o sistema não compromete o objetivo artístico do projeto?

Rohmer já dizia que o argumento de um filme começa no seu orçamento. O de O Rio Nos Pertence foi totalmente reescrito para se adequar à realidade da produção. Acredito que todo sistema de produção interfere no objetivo artístico puro. Mas não consigo imaginar qualquer feito artístico sem limitação. O importante é saber escolher quais limitações encarar.

Por exemplo, detestaria ter que fazer um filme com muito dinheiro, mas que está refém do marketing e de toda uma indústria de produtos secundários que o filme deve servir. A Operação Sonia Silk foi um gesto urgente e necessário e, por isso, intenso e bonito. Todos aprendemos muito com esse projeto e isso já é imensurável. Fico torcendo pra que esse exemplo sirva para abrir a mentalidade dos produtores de cinema. Quanto mais formas de produção tivermos disponíveis, menos chance teremos de nos tornarmos reféns de um sistema.

Uma vez que se pode supor uma certa rapidez nas filmagens, como funcionou o trabalho de direção da Leandra Leal, por exemplo? Houve muito ensaio prévio?

Com a Leandra houve mais de um ano de conversas. Ela leu todas as versões do roteiro e contribuiu muito em sua construção. Mesmo no momento da filmagem nós mexemos bastante no roteiro. Leandra é uma atriz que trabalha bem ao se entregar totalmente ao filme. Isso exige muito dela e exigiu muito de mim também, mas o resultado não podia ser melhor. Para o tempo que tivemos disponível acho que ela atingiu um nível muito preciso e potente de atuação.

O filme estreou no festival de Rotterdam há dois anos. Como foi a passagem por lá?

O filme ganhou um prêmio do Hubert Bals Fund pra finalização. Esse fundo é ligado ao festival de Rotterdam. Eles foram grandes parceiros em toda a Operação. Pra gente foi uma grande oportunidade e consideramos a curadoria de Rotterdam algo bem especial. Mas o que acontece é que Rotterdam é um festival que dá destaque a estreantes e nós não somos. Nesse sentido encaramos bastante dificuldade, sofremos um pouco com a “ditadura do novo”. É um festival com muitos filmes e isso dificulta mais ainda chamar a atenção. Acredito que a maioria dos críticos e curadores mal têm tempo de digerir os filmes que vêem.

Por fim, uma questão de mercado. O filme estreia num pequeno circuito no Brasil dois anos depois de ter passado em Rotterdam. Como é que vê as possibilidades do cinema de arte no Brasil?

O cinema de arte (termos de que não gosto) está sempre em vias de extinção, mas até hoje ninguém conseguiu matá-lo de vez, nem mesmo a televisão e a publicidade. Sempre existirá um foco de resistência de pessoas que querem fazer e assistir filmes que se abrem paro desconhecido e que oferecem desafios a mentes menos preguiçosas e menos céticas. É muito perigoso advogar por esse cinema, mas a recompensa é grande.

A Operação Sonia Silk acreditou no que era considerado impossível por muitos. Demorou muitos anos e quando finalmente rolou foram apenas duas semanas, mas que vieram com uma carga de intensidade tamanha que vai ressoar para o resto das nossas vidas. Estamos torcendo pra causar isso em alguns espectadores. Além da Operação, este ano devemos lançar um filme em Portugal. O filme se chama Com Os Punhos Cerrados e teve sua estreia mundial em Locarno.

 

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