Quinta-feira, 28 Março

Entrevista com Marco Dutra, realizador de «Quando Eu Era Vivo»

Quando Eu Era Vivo estreou no Festival de Roma no final de 2014 e hoje (13/04) será exibido no cinema São Jorge, em Lisboa, no âmbito do Festival Itinerante em Língua Portuguesa (FESTin). Marco Dutra, o seu realizador, confirma todas as boas impressões deixadas com Trabalhar Cansa, obra realizada em conjunto com Juliana Rojas e que conseguiu a façanha de ser selecionada para a prestigida A Certain Regard do Festival de Cannes em 2011. O C7nema conversou com Dutra sobre este singularíssimo e subtil espécime do universo terrífico, com participações improváveis e preciosas de António Fagundes e a cantora Sandy, para além de um desempenho avassalador, só para não variar, de Marat Descartes.

Ocultismo, loucura e opressão familiar são bons ingredientes para um filme explosivo mas você, no entanto, gere esses elementos de uma forma incrivelmente “pacífica”. Como é que surgiu essa conceção?

O ritmo e o visual do filme nasceram da própria dramaturgia, das escolhas que eu e Gabriela Amaral Almeida (corroteirista) fizemos ao adaptar o livro de Lourenço Mutarelli. O protagonista (o filho) passa por um processo gradual de redescoberta do espaço familiar, o que envolve necessariamente a memória da mãe morta, do irmão internado e do pai – o único que restou dentro da casa. Essa jornada se passa em poucos dias, mas se dá em movimentos muito pequenos: a descoberta de uma fita VHS velha, o uso de uma manta como capa, a observação atenta dos gestos do pai. Para mim e para a equipe de realização essa atenção aos objetos e aos pequenos gestos é que eram, na verdade, as grandes ações do filme. Os momentos explosivos são contidos e fugidios: o espancamento da namorada do pai, o grito para que o pai cale a boca e assim por diante.

Quando Eu Era Vivo é um filme que aposta muito na sugestão mas, ao mesmo tempo, surpreende ao trazer algum gore. Como geriu esse equilíbrio?

Procurei tratar a violência no filme como parte necessária dos rituais familiares. O sangue e as feridas estão ali como parte dos sacrifícios e das dores a que se submetem os personagens em busca da salvação – ou da perdição, a depender do olhar da audiência.

Em termos de cinema de género, o mais comum no Brasil são comédias e dramas embora, nos últimos anos, também se venha apostando no policial e no suspense. Mas, no seu caso, vai mais além – acrescenta alguns toques de terror que, excetuando-se José Mojica Marins e o seu Zé do Caixão e algumas produções B, ainda não tem uma filmografia muito grande no Brasil.

As tradições brasileiras relacionadas ao gênero são de facto restritas e sempre muito interrompidas ao longo das décadas. Sinto uma grande abertura recente na cinematografia brasileira para diferentes gêneros. Eu mesmo tive o prazer de trabalhar como compositor em dois musicais, O que se move e Sinfonia da Necrópole. Isso me parece muito saudável, porque o gênero é uma ferramenta para explorar o mundo narrativo de maneira diferente, possivelmente mais divertido e sofisticado. Tendo passado a primeira infância assistindo à Branca de Neve, Dumbo, Fantasia e A Bela Adormecida repetidas vezes, devo dizer que pouco me interessa o realismo, ou o naturalismo, ou o que quer que chamem superficialmente de “verdadeiro” no cinema. Ao restringir e lidar com regras, o fantástico, na verdade, liberta o olhar.

Você co-realizou outro filme com elementos de terror, Trabalhar Cansa. Pensa em aprofundar-se neste género ou partir para outras experiências? Aliás, já está a trabalhar noutro filme?

Estou finalizando um novo longa, também produzido por Rodrigo Teixeira, com título ainda em definição. Não há traços fantásticos, mas há suspense e, espero, um elemento erótico. O horror me encanta e pretendo aproximar-me de lobisomens no próximo filme, a ser rodado no fim do ano (As Boas Maneiras).

Como foi a entrada de Marat Descartes no projeto?

Trabalhei com Marat no curta Um Ramo e em Trabalhar Cansa. É um grande ator e um homem muito sensível a questões psíquicas que me interessam, como a passividade masculina. Ele entrou em Quando Eu Era Vivo” muito perto da filmagem. Eu não estava certo de que o papel era para ele, mas na primeira conversa me convenci. Ele via o personagem com muita clareza e o entendia. Tentamos desenhar o Júnior como uma criança gigante e vale a pensa observar o filme atento às maneiras com que ele se apropriou dessa ideia. 

 

Há duas participações especiais no elenco – uma é a do António Fagundes e a outro é a da Sandy (foto acima). Aliás, aquela cena final com ela é imperdível… Como surgiram essas participações?

Desde que eu e Rodrigo Teixeira imaginamos filmar o livro de Mutarelli, Fagundes era o ator sonhado para Sênior. Ele parecia absolutamente perfeito para fazer este pai simbólico, atemporal. Além disso, ele já era um fã do livro e de Mutarelli. Tivemos a felicidade de atraí-lo com o roteiro e de conseguir encontrar um bom período em sua agenda para a produção. Já a personagem Bruna é muito peculiar: surge como interesse romântico ou sexual e se transforma em irmã e parceira no crime. Seu envolvimento com a música me fez pensar em como conceber Bruna a partir da voz, da delicadeza e da força da voz. Sempre gostei da Sandy, desde criança. Eu e Fernando Oliveira, meu namorado, conversávamos sobre Bruna numa madrugada quando o nome da Sandy surgiu. Nunca consegui pensar em outro nome, e fico feliz que ela tenha também se empolgado com a ideia. Gilda Nomacce, Helena Albergaria, Kiko Bertholini e Tuna Dwek já eram amigos de longa data. Com Gilda e com Helena eu já havia trabalhado diversas vezes. Tive a sensação de formar, com o elenco, uma estranha e perturbada família.

Como foi a passagem pelo Festival de Roma?

Em Roma tivemos a primeira sessão internacional do filme. Foi muito bom, para mim, ver que os temas e universos abordados eram perfeitamente compreendidos por uma plateia estrangeira. O humor também funcionou bem, o que é sempre uma vitória. Comparações a Fulci e Argento na imprensa me deixaram, é claro, muito contente.

Quais seus realizadores favoritos? Eles influenciaram o seu filme?

Afora Disney, Hitchcock e Ford, que são um pouco como pais, Brian De Palma e Shyamalan apareceram em alguns momentos nas discussões com a equipe. Mas as referências e inspirações em geral são logo deixadas de lado quando o filme começa a tomar forma própria.

Notícias