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Entrevista a Saverio Costanzo e Alba Rohrwacher, realizador e atriz de «Hungry Hearts – Corações Inquietos»

 

Uma das maiores estreias da Festa do Cinema Italiano foi o mais recente filme de Saverio Costanzo, Hungry Hearts – Corações Inquietos, uma pequena tragédia sobre um casal em que a esposa (Alba Rohrwacher) fica obcecada com o purificar o corpo do seu filho, através de medicinas e regimes alimentares alternativos, ostracizando-se do mundo e do seu esposo (Adam Driver) quando este se recusa a colaborar.

Feito com um baixo orçamento, mas com grande “instinto”, o C7nema teve o privilégio de entrevistar o realizador e a atriz no Átrio do Hotel Tivoli, com a ajuda da tradutora Clelia Bettini, numa conversa que fala, entre outros temas, das origens do filme, de alguns elementos simbólicos, do percurso profissional do realizador e das referências com que já foi apontado, de Polanski a Bresson.

Em primeiro lugar gostaria de dar os meus parabéns pelo sucesso do seu filme, particularmente em Veneza, mas também não só. Disseram-me que quando o filme foi exibido a sala estava quase cheia.

SC: Sim, ontem à noite. Foi muito bom, na verdade.

Como é que a ideia do filme surgiu e se expandiu para o filme?

SC: Teve origem num livro, “Il Bambino Indaco” (Marco Franzoso) que li há cerca de quatro anos. Achei-o muito impressionante, mas demasiado forte e violento para ser feito num filme. Portanto, não pensei em fazê-lo imediatamente, mas após ano e meio, estava ainda a pensar na história e, um dia, sem razão concreta comecei a escrever o argumento. Demorou-me apenas uma semana, porque foi muito escrito por instinto, de uma maneira fácil e rápida. O livro está estruturado de forma diferente, muitas cenas do filme não estão nele. Tem poucos diálogos, é mais narrativo. Mas achei o coração dele muito comovente por causa da personagem dela que é a razão pela qual o filme existe.

E quanto ao título [Hungry Hearts]? Foi por causa da música do Bruce Springsteen?

SC: Sim, foi por causa dele. Estava à procura de um título e cada vez que faço um filme, vou para as músicas do Bruce Springsteen. Pensei, por exemplo, em “Dancing In The Dark“. Ele é um poeta. “Hungry Heart” não é uma canção tão boa para mim, não uma das melhores, mas encaixava muito bem no filme. Portanto acrescentei apenas um “s”. Para mim é bom para uma história de amor que é o que o filme para mim é, mesmo que seja uma tragédia. O amor pode ser uma tragédia.

Também reparei que há uma preocupação com o tema da paternidade. Tem algum elemento autobiográfico? Creio que também é pai.

SC: Sou também pai de duas crianças. Passei por uma separação. Não é auto-biográfico porque nada naquela história pertence à minha.

Não é vegan?

SC: Não, graças a Deus. (Risos) Mas foi-me muito útil escrever o argumento para perdoar-me, a mim e à mãe dos meus filhos pelo que aconteceu e aprender a ver-me com ternura. Na minha opinião, escrever e fazer o filme foi útil para atingir o meu interior. Portanto, há muito de mim no filme.


Alba Rohrwacher

Alba, o vosso filme passou na Festa do Cinema Italiano juntamente com outro onde também é a protagonista, O País das Maravilhas. Queria perguntar-lhe qual é a diferença principal entre ser dirigida por alguém que a conheceu a vida inteira [a irmã, Alice Rohrwacher] e alguém que não conhece há tanto tempo.

AR: Trabalhei com o Saverio há cinco anos, em A Solidão dos Números Primos, por isso temos uma relação artística forte. De certa forma, conheço-o melhor como realizador do que a minha irmã. Porque conheço-a como minha irmã e não como realizadora. Para mim, há sempre algo sobre a confiança. Sei que confio nele [Saverio]. Sei que sou capaz de encontrar alguma coisa quando é ele a realizar, na forma como dirige os actores. Com a minha irmã não sabia, estava um pouco assustada, preocupada que a relação entre nós se tornasse um obstáculo no sentido criativo. Por isso disse, “talvez não o devamos fazer juntos”. Mas depois descobri que o grande amor, que é também um grande conflito entre nós não é um problema durante a rodagem. Conseguimos lidar com ele como uma relação muito forte, mas também profissional. Como disse, é sobre confiança.

Tal como confiou em Saverio?

AR: Claro, mas quando ele me pediu para fazer Corações Inquietos, disse “Sim, quero”. Mas com a minha irmã, disse “Ok, mas achas que conseguimos lidar com isso?”. E ela disse que sim. No princípio, ela estava à procura de um outro tipo de mãe, como ela não é a personagem central, tem que ser necessária para alguma coisa. Não sou o typecast para esse papel, mas estou muito familiarizada com esse ideal porque eu e ela partilhamos o mesmo ideal de mãe.

SC: Não, partilharam a mesma mãe, o que é mais do que um ideal (Risos).

AR: Claro, a mesma mãe, mas também o seu ideal artístico. E por isso percebi porque é que ela me escolheu.

[Saverio] Foi também o operador de câmara para este filme. Isso tornou-o mais próximo dele?

SC: Eu não sou um operador de câmara profissional. O primeiro dia de filmagens foi a primeira vez que estive com uma câmara de 16mm no meu ombro. Foi um grande risco, porque isto é um trabalho profissional, mas tomei-o porque sabia que era a única maneira de, num filme tão pequeno, tornar as coisas mais fáceis, estar na relação entre eles, sempre no cenário, sempre na cena. E também porque o meu último trabalho, A Solidão dos Números Primos, era muito maior enquanto produção. Neste eu precisava de sentir o filme.

Não o sentiu em A Solidão dos Números Primos?

SC: Não, quer dizer, foi mais intelectual a minha abordagem nesse caso. Neste, foi apenas emocional. “Sentir o filme” significa fazê-lo. E a partir do momento em que temos uma câmara no ombro, sentimos isso, o que faz uma grande diferença. Costumava ser o operador dos meus documentários, no princípio da minha carreira. E esta é também a forma de dirigir actores, mesmo quando estamos a fazer um documentário. Fazia-os como Frederick Wiseman, observando a realidade, mas fazia-a ter o que queria que tivesse, respeitando, claro, a vida deles. Eu não fiz nenhuma escola de cinema, mas aprendi muito a fazer documentários e também a dirigir pessoas. Podes dirigir sem falar quando és o operador da realidade porque ela segue-te de alguma forma. Há uma espécie de colaboração silenciosa entre ti e as pessoas que filmas. Eu não falei muito com eles [Adam e Alba] porque o argumento era muito claro, mas o facto de estar no meio da cena ajudou-me muito. Não no sentido intelectual, mas apenas a mover-me com eles, a estar com eles. Por isso ser o operador é um dos aspectos que me deixa mais feliz com o filme. Estou muito satisfeito por tê-lo sentido literalmente sem nenhuns pensamentos ou conversas intelectuais.

Já que falou em realizadores, gostaria de perguntar quais as suas influências. Li algumas críticas que referiam Polanski, particularmente A Semente do Diabo. Mas enquanto o via pensei que tivesse mais um “feeling” de John Cassavetes, devido à maneira como olhava para o casamento. A personagem de uma esposa neurótica lembrou-me Uma Mulher Sob Influência.

SC: As influências para mim são muito estranhas porque desde que comecei a fazer filmes, cada um deles tem uma influência diferente. Não para mim, mas para os críticos. O primeiro [Private] foi um documentário, muito duro e cheio de cortes, sobre a Palestina. O segundo [In Memoria di Me] foi sobre a religião. Por isso as influências que apontaram foram o Bresson e o Dreyer. Claro que estudei muito estes filmes, mas não queria citá-los. Não tento ser nenhum deles. Mas devido ao filme ser sobre a religião, o crítico pensa em Dreyer e Bresson. No terceiro [A Solidão dos Números Primos] pensei em filmes de horror, mas não pensava no Dario Argento, só na atmosfera que procurava.

Neste caso, quem me dera ter sido John Cassavetes, mas há dois opostos: ele e o Polanski, que são muito diferentes. Os críticos dizem que ambos estão presentes. Mas, na verdade, a única coisa em que fui influenciado foi na maneira como o Cassavetes fazia o filme de forma independente, o que quer dizer apenas deixar as personagens saírem. Não fazer um esforço intelectual sobre a realização, apenas deixar a vida sair do filme. Para mim, isso é o Cassavetes e foi a única forma em que fui influenciado por ele porque ele era muito ingénuo. Quem me dera ter tido essa ingenuidade porque a minha pára quando o pesadelo surge, ou seja, a tensão do filme. Ele nunca está nesse pesadelo.

Portanto, começa como um Cassavetes, mas não o é até ao fim. Aí entra o Polanski com os seus pesadelos e atmosferas. Dizem que se parece com o Repulsa, mas nunca vi esse filme. Só pensei nele para o vestido da Mina [a personagem de Alba] que parece-se um pouco com o da Mia Farrow. Mas foi a única referência. Penso que faço o mesmo trabalho que o Polanski, lidamos com os mesmos problemas como qualquer realizador a fazer o filme. Estamos num apartamento pequeno e usamos lentes grande-angulares para dar a ideia de espaço. Se ele as usou no Repulsa foi, talvez, pelo mesmo motivo. O que digo é que partilhamos o mesmo trabalho, apesar de em períodos de tempo diferentes. Às vezes encontras semelhanças entre as pessoas, mesmo que estas não se conheçam. Pensa, por exemplo, num vendedor de seguros e na maneira de como vende. Pode ser a mesma que a de um vendedor em Lisboa ou Itália porque fazem o mesmo trabalho. De alguma forma, há algo que me aproxima do Polanksi, mas de uma forma diferente, quero dizer, ele é um mestre, mas fazemos o mesmo trabalho. Dizem que sou influenciado por muitos realizadores, mas na verdade, sou apenas influenciado por mim e é esse o ponto.

Hungry Hearts – Corações Inquietos

Alba, enquanto via o filme, sentia uma grande espontaneidade entre os atores, uma grande naturalidade. Você e o Adam Driver tiveram algum período de preparação extenso ou houve alguma improvisação?

AR: O principal é o argumento, que era muito claro. Por isso apenas seguimo-lo e o resto veio. Fazíamos cinco horas de ensaios em que apenas o líamos. Mas o que o Adam procura é o mesmo que eu procuro e, já agora, o Saverio: as personagens, os momentos, as emoções. Seguimos o argumento, vem alguma improvisação e o Saverio dança connosco com a câmara. Há uma combinação muito artística. Talvez com outro ator houvesse um ponto de vista diferente assim como a maneira de chegar a esse ponto, o que tornaria as coisas mais complicadas. Talvez no fim tivéssemos chegado ao mesmo, mas para lá chegar teríamos que entrar em conflito. Neste caso, o caminho é o mesmo. Queremos ser honestos com o sentimento da personagem, não é uma questão de representação, mas fazer com que se sinta muito real, muito autêntico.

Gostaria de falar sobre algumas cenas do filme. A primeira é um take longo de oito minutos. Essa cena é um outsider relativamente ao resto, que é filmado manualmente e com takes mais curtos. Porque é que o quis começar desta forma se o resto do filme não segue essa direção?

SC: Não, não é verdade. Há cenas como aquela em que a mãe chega à casa pela primeira vez, com um plano picado de cerca de quatro minutos e meio. E depois há a última com a praia. Mais uma vez, não pensava numa gramática intelectual, mas seguia apenas o meu instinto, porque é a primeira cena e tem que ser credível. É um encontro, é a origem do amor. Sentia que seria desonesto se cortasse a cena e pusesse alguns grandes planos. Tem que ser credível em apenas um plano, porque é o que faz parecer a cena real. Creio que parece um extra porque, em primeiro lugar, é uma comédia e não há mais risos depois dessa cena. Em segundo lugar, porque a filmámos no final do período de rodagem, após quatro meses, em Roma e não em Nova York (onde decorreu a maioria da produção). Mesmo no argumento era assim, vinte páginas inteiras. Para mim, é como a literatura. Gosto quando abro um livro e a primeira frase diz-me tudo o que vou ler. Tem que ser forte para parecer credível. Naquela cena tens o que se vai passar no resto do filme: duas pessoas fechadas num espaço apertado, a encarar o humor um do outro e só são salvos por uma pessoa de fora. No fim, percebes qual o propósito e significado dessa cena. Não é apenas engraçada, é também simbólica.

Uma das minhas cenas favoritas é a da igreja. No apartamento estava tudo muito escuro, mas na igreja há aquela luz toda e é aí que Jude [a personagem de Adam] alimenta o bebé. Porquê esse local e não, por exemplo, a casa da mãe ou a parte detrás de um carro? Teve algum simbolismo?

SC: Não há simbolismo nenhum, havia apenas esta igreja em frente à casa. Para nós, italianos, as igrejas fazem parte da nossa cultura. Pensei que aquele local poderia ser onde alguém fosse alimentar um bebé ou para ser visto porque Jude não tem uma relação muito próxima com a mãe, por isso vive um pouco longe dela. Mais uma vez, foi o meu instinto.

Têm projetos futuros? Tencionam trabalhar juntos outra vez?

SC: Não tenho nada concreto de que possamos falar. Talvez seja com a Alba, mas não sei.