Sexta-feira, 29 Março

Entrevista a Margarida Cardoso, realizadora de «Yvone Kane»

Yvone Kane chegou aos cinemas dez anos depois da primeira longa-metragem de ficção da cineasta Margarida Cardoso. Trata-se de um revisitar a uma Moçambique traumatizada pelos horrores da guerra colonial e pelas promessas não cumpridas.

O C7nema teve o privilégio de falar com a realizadora sobre o seu mais recente filme, a sua confrontação com os fantasmas do passado, o seu regresso “indefinido” a Moçambique e o seu olhar ao panorama atual do cinema português.

Como surgiu a ideia deste filme? Como foi regressar a Moçambique?

Surgiu exatamente do facto de eu não ter regressado. De ter feito imensos projectos lá. Ao longo deste tempo todo, tenho trabalhado sempre em vário projetos de lá e foi então que fui construindo esta ideia de uma grande atração pelos espaços, não é bem paisagens, mas territórios distantes, locais mais abandonados, e tudo isso. E a partir daí decidi fazer um filme que passasse na atualidade. Todo os outros filmes que tinha feito ou eram uma reconstituição dos anos 60 ou exploravam um período pós-colonial. Então senti a necessidade de fazer algo que decorresse nos dias de hoje. Comecei a construir as peças para filmar uma coisa que fosse ctual, captar um mundo com condimentos mais do real e enfim.

Como profissional sentiu alguma diferença entre a produção A Costa dos Murmúrios e este Yvone Kane?

Sim, há muitas diferenças. Em A Costa dos Murmúrios tinha uma época que era a colonial, e então os murmúrios eram os últimos sons antes do fim, ou seja, antes do silêncio. Acontece que depois da época colonial veio um silêncio para os portugueses. Nós utilizávamos muito a História para descobrir algo no tempo, agora não. Também me interessou aqui seguir para outro fim de época, não a colonial, mas neste filme, que se passa na atualidade, tentei falar do fim da nossa relação ideológica com África. Aquelas pessoas que estiveram lá e que acreditavam naquelas causas, naquelas ideologias, no Homem Novo e a igualdade entre as classes. Todas as vezes que essas pessoas tentavam construir esses países, que agora são ultra-capitalistas, são ultra-liberais, enchi-os com “sonhos e ideias comunistas”. Então, com este filme tentei retratar um fim de uma época de ideologias e de sonhos. E são épocas muito diferentes, muito marcadas. Moçambique teve um Guerra Civil durante muito tempo e agora é um país que se considera em fase de construção, ou seja, muito diferente da época colonial.

Quem é Yvone Kane? Como se inspirou para criar a personagem?

Essa personagem é inspirada, digamos, nas suas ações, no que ela faz individualmente. Foi inspirado nos “milhões” de filmes que vi quando fiz o Kuxa Kanema – O Nascimento do Cinema. Tive que ver praticamente tudo que havia no arquivo, como também muitas reportagens durante a luta armada e fiquei assim com uma ideia concreta, logisticamente, do que passa numa manifestação, como funcionam estes movimentos, o destacamento feminino e estas coisas todas. A partir daí comecei a criar uma personagem que é uma mistura entre várias coisas que tenho andado a estudar. Estou a fazer um documentário sobre uma angolana que em 1977 foi assassinada. Ela era uma revolucionária, a Sita Valles, e uma mistura de outras figuras que existem do sindico feminino, como a Josina Machel, que era a ex-mulher do Samora Machel. Então juntei essas personagens e criei uma personagem mítica, uma personagem fictícia, que engloba isso tudo. Yvone Kane vai sendo também revelada durante o filme numa pessoa essencialmente verdadeira. Porém, não é uma heroína.

Sentiu dificuldades na produção deste filme? Se sim, quais?

Senti todas as dificuldades [risos], mas não vou numerar uma lista de compras. Sim, senti muita dificuldade. A primeira dificuldade foi o financiamento do filme. Depois, finalmente conseguimos uma colaboração com o Brasil e a próxima questão foi que atravessamos um período de bastante crise na altura em que foi filmado. Começámos as preparações em 2011 e só conseguimos terminá-lo em 2014. Portanto, foram 4 quatros. Em 2012 demorei muito a fazer a pós-produção, por falta de verbas, e foi então passando o tempo. A maior dificuldade do filme foi essa, não em termos económicos, mas nesse financiamento, em desbloquear verbas. Sim, foi difícil.

Porquê a atriz brasileira Irene Ravache como uma das protagonistas?

Porque queria uma pessoa que fosse muito parecida com a Beatriz, que interpretasse a mãe dela e curiosamente a verdadeira mãe da Beatriz não se parece nada com ela [risos]. Nos filmes a gente tenta ir mais além da verdade. A propósito, em Portugal não temos um leque de atrizes tão grande naquela casa dos 70. Teria que encontrar alguém com 70 anos com a mesma simetria da Beatriz e com vitalidade. Queria uma pessoa que transmitisse que estaria a morrer e ao mesmo tempo fora traída pela própria morte. Que poderia viver por ainda mais tempo e que tivesse físico para isso.

Em Yvone Kane, você filme muito os reflexos, ou através de janelas e redes. Essa pratica pode ser vista como uma protecção para si ou para as personagens?

Tal como nos outros filmes, eu gosto do eco das coisas violentas e gosto de uma coisa que os ingleses denominam muitas vezes que é a aftermath, depois da catástrofe. Eu não me interesso pelo momento em si do conflito, mas pelo que resta disso, o que sobra disso em ecos, reflexos. De certa forma também os reflexos criam uma cinematografia que não é direta. Estás sempre por detrás de qualquer coisa. Acho que tudo isto faz parte do que quero dizer com o filme. Todo ele não é claro, nada é explicado e interessa-me realmente, como dizes, estar protegida. Quando acontece alguma coisa de importante, a minha reação é de colocar a câmara muito longe e não perto. Não estou interessada em abordar acontecimentos muito fortes.

Neste filme você recorre a poucos planos fixos. Porém, a sequência final é um longo plano fixo. Existe algum significado nessa imagem concreta – a de restaurar uma piscina como uma espécie de exorcismo?

Sim, a piscina é o plano mais simbólico do filme, mas antes disso devo dizer que o filme é praticamente constituído por planos fixos, eu é que não tinha muita maquinaria. Por isso utilizamos muito a câmara à mão, sendo que os planos são muito secos, muito quadrados visualmente, porque é muito distante. O plano da piscina é tão longo quanto aos outros. O filme tem é uns planos com uma duração muito grande. Mas o tal plano é simbólico porque é evidente. As pessoas enterram o passado, digamos a memória, e fica tudo enterrado. Provavelmente também os “fantasmas”, a personagem descobre documentos e isso pode gerar qualquer coisa, mas a partir daí quis, ao invés de acontecer qualquer coisa que pudesse revelar quem é que matou a Yvone, que não soubéssemos nada e voltássemos à aragem e nos guiássemos pela memória final.

Considero Yvone Kane um filme sobre perdas. O filme teve como base alguma perda sua ou um estado de espírito seu?

Sim, acho que é a experiência de perder, mas não diretamente. Não tive perdas diretas, mas tive consequências, por isso é que gosto de falar delas. Tive as consequências de perder muitas coisas à volta. Perder sobretudo um território identitário, o que não tenho, mas que sinceramente é uma boa ajuda não o ter. A mim inspira-me um pouco não ter essa identidade, um atual território identitário, porque ficas sempre condenada a procurar coisas. Não há ninguém que te dê uma resposta clara e então tens que procurar. Nesse aspeto, a perda mostra-se mais como uma ausência de um ponto referenciado.

“A vida é estranha, não é?” Sente-se em Yvone Kane uma certa desmistificação do misticismo. Existe uma sequência que revela isso. Com isto quer dizer que é pessimista?

Sim. Sou e é bom ser. Creio muito que os outros são capazes de fazer melhor e o pior. Então fico sempre disposta a essa dualidade, quer dizer, fico numa tristeza, uma dificuldade muito grande em aceitar tudo o que é muito violento, duro. Tudo o que há de mau nas pessoas e ao mesmo tempo uma alegria da noção da vida. Tudo muito maravilhoso, muito fantástico, os mistérios da vida que a gente nunca consegue saber onde estão as respostas. Acho isso fantástico e quando aquele rapaz disse que uma coisa que nunca esqueces é que por mais que estejas ligado a uma pessoa, tu estás sempre sozinho [a cena]. Não é dramático, mas é verdade. Ele amava a Yvone, a Yvone amava-o. A verdade é que eram capazes de tudo, mas quando a Yvone sumiu, ele estava a fazer outra coisa, e não havia nada que os ligasse. É a natureza da vida. E quando ela diz à mãe que “fizeste o que pudeste”, é isso. As pessoas fazem o que podem. Há laços que são impossíveis, simplesmente não existem.

Joaquim Pinto afirmou recentemente em Berlim numa entrevista ao C7nema que «o cinema português, pelo menos no que diz respeito aos financiamentos oficiais, não é insensível a grupo de interesse». Partilha a mesma opinião?

Eu não creio muito, quer dizer, acredito que existe esse tipo de lobbies e interesses, como existe em todo o lado como tudo. Agora, não tenho assim nenhum complô acerca disso. O que tenho a dizer da minha parte é que tenho mais problemas comigo do que com os outros. A minha grande luta é lutar contra os meus problemas. É trabalhar bem, é conseguir escrever coisas boas, como também fazer filmes bons. É fazer um bom trabalho. Isto aqui é a minha luta, sendo que não tenho muita queixa dos outros. Raramente digo “ai não me deram o subsídio”. Por acaso tive sempre sorte. Mas isso não é um problema. O problema é lutar contra ti. Ás vezes dizemos que não fazemos o filme por isto ou por aquilo, isso resulta porque metade das coisas que não consegues é lutar contra ti mesmo. Não acredito nisso, nessa “força” enorme. Mas atenção, eu acho que há lobbies em todo o lado.

Como vê as mudanças implementadas na questão dos júris dos concursos do ICA que tanta celeuma criaram em alguns meios?

Não estou muito preocupada. Mas parece que as associações dos realizadores podiam escolher os representantes ou anunciar alguns nomes. Eu por mim não percebo nada. O que percebo é o porquê de funcionar com júris. Porque legalmente tem que funcionar. Mas no meu sistema ideal preferia que houvesse comissões, por exemplo, trianuais, que fariam uma politica trianual, que decidissem quem filma, quem é que não filma e quem é que vai filmar. Pessoas que não fossem os mesmos júris para cada concurso, mas que terminassem passados três anos e saber a politica a seguir. Quanto aos concursos em que uma pessoa apresenta os projetos, e que tanto faz se aquilo é de uma cor ou cinema comercial, são coisas que não fazem sentido nenhum, pois as pessoas vão rodando e nenhuma dessas está a dar pontos indiscriminadamente nos currículos. Num currículo, bem podes ter um ou ter dez [filmes], conforme lhes apetece. Portanto, se estás a ser julgada por um júri o teu currículo tanto vale ter cinco como dez [filmes]. É conforme os concursos. O que é que uma pessoa pode dizer a isto, não é?

Tem algum projecto de sonho que devido à conjuntura não conseguiu ainda concretizar? Há algum projecto no futuro?

Tenho muitos, mas vai disto que estava a dizer, que por vezes tem que se abdicar de algumas coisas. Por exemplo, para além de filmar também dou aulas. Às vezes o meu trabalho na escola toma muito tempo para eu fazer outras coisas. Teria que abdicar disso, ou pelo menos tirar um ano. Mas tenho com certeza outros projetos. Tenho um inserido neste último concurso, que é um documentário e acabei de escrever uma ficção, a qual vou apresentá-la no próximo concurso.

Como vê os festivais e que papel desempenham no cinema português?

Os festivais acabam por ser isso, uma rede. Como curadores de arte, os curadores de festivais escolhem os filmes a ser projetados e isso aí é politica pura e dura. As pessoas podem ter olhos para o teu filme mas há sempre milhões de filmes tão bons como o teu, ou tão maus como o teu, a concorrer. Por isso, mesmo que o teu filme seja muito bom, ele deve estar protegido para poder “vingar”. E isso é o jogo mais politico que se possa imaginar. É muito complicado, é preciso ter uma rede e depois os filmes vêm com aquele rótulo de festival e aparece sempre um distribuidor que só compra o filme que teve em festival X, ou seja, os festivais acabam por condicionar o distribuidor, assim como tudo. É quase como um rótulo. Penso que o papel deles nunca é demonstrar filmes às pessoas que nunca viram tais, mas sim, simplesmente uma coisa politica, porque muitas vezes esses festivais grandes, como em Veneza, temos sessões em que não aparece lá ninguém. É apenas o esquema todo à volta.

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