Sexta-feira, 26 Abril

Entrevista a Jorge Pelicano, realizador de «Pára-me de Repente o Pensamento»

 

Depois de Ainda Há pastores? (2006) e Pare, Escute, Olhe (2010), Jorge Pelicano regressou ao cinema este ano com Pára-me de Repente o Pensamento, um documentário que teve a sua estreia  mundial no Doclisboa e que entretanto já passou pelo DOK Leipzig’14, na Alemanha, e pelo Caminhos do Cinema Português.

Neste último certame, que terminou no último fim de semana em Coimbra, Pára-me de Repente o Pensamento – que acompanha a pesquisa do ator Miguel Borges no mundo interior da esquizofrenia – foi galardoado por três vezes, recebendo o Grande Prémio do Festival, o prémio de Melhor Realizador e o Prémio do Público.

O c7nema teve a oportunidade de entrevistar Jorge Pelicano, que nos explicou como surgiu este projeto, quais as dificuldades aliadas a ele e o que significam estes prémios que a obra vai conquistando.

Antes de mais, parabéns pelo triunfo no Caminhos do Cinema Português. O que significam para si estas distinções?

Muito obrigado. Não vou ser hipócrita, os prémios são importantes. Para além de serem um reconhecimento do nosso trabalho, dão currículo e prestigio ao filme. Sinto os prémios como uma nova oportunidade que nos dão para continuar a fazer cinema. Vou continuar a trabalhar nesse sentido.

Como surgiu este projeto?

Em outubro de 2013 juntei-me a outros três autores – o escritor Manuel Andrade, o fotógrafo Miguel Rolo e o ator Miguel Borges – para fazer um projeto Transmedia. A ideia foi criar quarto obras artísticas e autónomas sobre um mesmo tema – a saúde mental – e dentro de um mesmo espaço físico – o Hospital Psiquiátrico Conde de Ferreira. Passado um ano já foi escrito um livro, criada uma exposição fotográfica e agora o documentário Pára-me de repente o pensamento, realizado por mim e que teve como ponto de partida a pesquisa do ator Miguel Borges no interior do hospital para a criação de uma peça de teatro que subirá ao palco em 2015.

Como foi o processo de autorização de direitos de imagens para os pacientes?

Houve sempre muita abertura da instituição hospitalar mas o risco esteve sempre do nosso lado. A condição sine qua non para a autorização final era que o filme teria que ser aprovado pela administração e comunidade médica do hospital. Isso só foi conseguido na fase final de montagem. Quando terminámos o corte final houve um último visionamento para a comunidade hospitalar. Direção, médicos e utentes concordaram com o resultado final, ou seja, viram que não desrespeitámos a imagem dos utentes e instituição, conseguindo depois as autorizações. As mesmas foram formalizadas num documento onde para além da assinatura de cada um dos utentes constava a assinatura de um médico como testemunha.

Houve alguma preocupação por parte da equipa médica com o transtorno que um filme destes pudesse provocar?

Claro que sim! Seria de estranhar caso não fosse dessa maneira. A equipa médica acompanhou todo o processo de montagem do filme, impondo opinião clínica (muitas vezes crítica) o que nos ajudou a proteger ao máximo a dignidade dos utentes/personagens do filme. Mas devo dizer que antes da preocupação da equipa médica houve a minha preocupação como realizador em proteger todos os intervenientes. E isso, na minha opinião e na dos médicos foi conseguido, caso contrário não tinham dado autorização.

Como foram evitados ou enfrentados os problemas que poderiam surgir?

Bastante diálogo entre a equipa de cinema e a médica. Eles perceberam a nossa vontade de contar uma estória. Perceberam também que não poderíamos nem queríamos contar tudo. Existiram situações que não se podiam compreender no “curto” tempo de um filme. Só mesmo passando pela experiência, estar lá, ver e ouvir para depois compreender. Costumo dizer que o documentário é o género cinematográfico que mais se aproxima da verdade, nunca é a verdade. O filme foi o resultado do meu olhar e do que achei importante partilhar com o público.

Foi feita alguma seleção quanto aos pacientes que podiam ser filmados?

Tivemos acesso a todos os pacientes. A primeira filtragem teve por missão averiguar se poderiam ou não ser personagens capazes de servir a narrativa e os propósitos do filme. Eu e a minha equipa – Rosa Silva (produtora de conteúdos), Renata Amaro (produtora executiva) e Inês Rueff (assistente de realização) – trabalhamos sem câmara durante duas semanas – antes da “entrada” do ator – para melhor conhecer os utentes e ganhar a confiança deles. O passo seguinte passou pela obtenção das autorizações que nos permitiu iniciar as filmagens que duraram cerca de cinco semanas.

Como surge a personagem de Ângelo de Lima?

De uma forma muito natural. Sabíamos que o Hospital Conde de Ferreira tinha um grupo terapêutico de teatro, coordenado pelo professor João Pereira. Fez questão de “abrir o jogo” ao grupo de trabalho e informar da chegada do ator Miguel Borges para trabalhar com eles na peça de teatro que assinalou os 131 anos da instituição psiquiátrica. A peça retratou as várias figuras “históricas” que passaram pelo hospital como o filho de Camilo Castelo Branco ou a visita do Rei D.Manuel II. Ao ator Miguel Borges, o professor atribuiu a personagem de Ângelo de Lima, que foi um poeta, esquizofrénico, internado no Conde de Ferreira entre 1902 e 1905. Ele foi admirado pelos poetas do Orpheu – como Fernando Pessoa -, que ambicionavam ser loucos, que tudo faziam para aceder a esse estado, muitas vezes encenando-o ou provocando-o. A loucura de Ângelo de Lima era real e involuntária de que nunca conseguiu sair. Miguel Borges mergulhou na vida do poeta e integrou o grupo de teatro até à exibição da peça em finais de março.


Miguel Borges

Como se foi modificando o projeto durante a sua rodagem?

Na fase da rodagem não senti modificações. Tínhamos bem definido o nosso propósito cinematográfico: qual a reação dos utentes a um elemento não pertencente à instituição – o ator Miguel Borges – que chega do exterior (da sociedade dita “normal” ) e mergulha no mundo interior da esquizofrenia, no caso, o Hospital Psiquiátrico Conde de Ferreira. A câmara segue a pesquisa que ele fez dentro daquele espaço para a criação da peça de teatro. Mas não pretendi ser demasiado voyeur, dei espaço e solidão ao ator. Quando o deixava na intimidade do seu trabalho partia para juntos dos outros personagens – o Alberto e Abreu – retratando o seu dia-a-dia. O filme foi-se construindo na montagem, consequência do corte, sempre com a preocupação de defender não só os utentes mas também o papel do ator Miguel Borges. Ele nunca quis ser o protagonista, manifestou-me isso várias vezes, e a minha resposta veio no corte final que tentou equilibrar a presença do ator com a interação dos outros personagens/utentes.

Não há um reforço do estigma da loucura na representação de Miguel Borges, depois de um trabalho tão grande para o eliminar na primeira parte do filme?

Percebo a pergunta, mas penso que não. Se na primeira parte, a atitude do Miguel Borges é muito passiva – olha, escuta e regista a realidade da instituição – na segunda parte, ele tem um papel ativo, interage mais com os utentes, “utilizando-os” como fontes de pesquisa do seu trabalho. Houve sempre a preocupação do ponto de vista narrativo de justificar a presença do Miguel Borges. Por isso mostramos parte do resultado final do trabalho dele que é a interpretação do personagem Ângelo de Lima na peça de teatro dos 131 anos. A outra parte do trabalho do Miguel será visto numa peça de teatro que ele irá fazer em 2015 já fora do hospital. Quanto à loucura, que é menos defendida na segunda parte do filme, e interpretada pelo Miguel, não é uma loucura real, ou melhor, não é uma loucura atual. Era aquilo que sentia o Ângelo de Lima que o ator interpretou no filme. E isso, do meu ponto de vista, foi interessante ver, isto porque, permite comparar quais os comportamentos dos utentes no inicio do Séc. XX com os atuais, em grande parte graças á evolução dos fármacos e a introdução de novas terapias como o teatro.

Como reagiram os pacientes ao filmes (se já o viram)?

Este é o meu terceiro documentário. Tal como nos anteriores, os protagonistas das minhas estórias são sempre os primeiros a ver resultado final. É uma questão de respeito pelas pessoas que permitiram a entrada do cinema nas suas vidas, até porque muitos delas, por vezes, não têm a noção da finalidade do trabalho. Também em Pára-me de repente o pensamento, os pacientes retratados e os médicos foram os primeiros a visionar o último corte. A autorização final estava dependente da opinião deles. Felizmente, à segunda tentativa o filme foi aprovado. Na primeira versão, os médicos sentiram o filme pesado e com algumas sequências que poderiam ser mal interpretadas pelo público. Foi um risco que corri, estiquei a corda, perceber até onde podia ir e os médicos deram-me essa resposta. A critica médica ao filme, descortinou reações e sensibilidades, impondo-me limites à narrativa cinematográfica. O filme ganhou com isso.

Tem novos projetos para o futuro? Se sim, poderia descrevê-los um pouco?

Tenho muitas ideias em carteira mas não quero precipitar-me para um novo projeto documental. Pára-me de repente o pensamento abriu as portas para um outros tipo de festivais de cinema documental, como o Dok Leipzig, onde estive em finais de outubro na competição internacional. Conheci muita gente reconhecida do meio – realizadores, produtores, distribuidores – com quem tive a oportunidade de trocar opiniões, ouvir criticas e ver os filmes que fizeram. Esta é também uma boa maneira de apreender. O período de vida de um filme em festivais é de um ano, quero viver essa experiência, quero refletir sobre o trabalho dos outros e do meu, que compreender-me melhor, criticar-me e só depois partir para uma nova aventura. No fundo quero parar, escutar e olhar mas mais tarde voltar a filmar.

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