Sexta-feira, 19 Abril

Quando os cadáveres valem mais do que os vivos: uma entrevista com Fabianny Deschamps

A realizadora francesa passou por Portugal enquanto decorria a etapa lisboeta da Festa do Cinema Francês, onde apresentou o seu New Territories, uma densa e muito singular abordagem de um facto impressionante: o desaparecimento de pessoas no Sudeste da China para alimentar um lucrativo comércio de cadáveres.

Incrível, mas verdadeiro: gangues especializados vendiam os corpos a aldeões supersticiosos que nunca suportaram a ideia da cremação, obrigatória no país, acreditando que a alma de um cadáver não enterrado no solo nunca poderá descansar. Assim, o verdadeiro era enterrado às escondidas e o falso, comprado por pequenas fortunas, eram entregues aos agentes governamentais… Em conversa com C7nema, a cineasta fala das opções que tomou para o filme e de seu novo projeto, em curso na Itália, sobre a imigração.

Como surgiu a sua ligação com a cultura asiática?

Eu viajei muito pela Ásia e passei bastante tempo em Hong Kong, que é um lugar muito fotogénico. É um local único e fascinante, onde as culturas asiáticas e ocidentais misturam-se de forma complexa e apaixonante. Ao mesmo tempo, como artista, quando não estás no teu habitat natural tu podes inventar, podes encontrar um tipo de grande liberdade na subjetividade de um ponto de vista estrangeiro.

Ficou chocada quando descobriu que se assassinavam pessoas para se venderem os cadáveres?

Quatro anos atrás, quando vivia em Hong Kong, eu li no Morning Post a terrível notícia sobre o comércio de cadáveres no sul da China. Durante muitos anos, no condado de Jieyang, pessoas começaram a desaparecer num raio de 50km. Estes desaparecidos eram assassinados para que os seus corpos substituíssem aqueles que eram entregues pelas famílias para incineração.

Vários gangues de traficantes eram especializados neste negócio e vendiam os corpos de substituições por quantias que chegavam aos 900 euros, uma fortuna para os camponeses. Depois da prisão destes homens, muito poucos detalhes foram fornecidos sobre o caso, largamente abafado pelo governo chinês na tentativa de evitar controvérsias. Isto porque na China, Hong Kong incluída, este assunto é um tabu absoluto.

Este vazio de pistas e o silêncio que se fez sobre o caso fez-me desejar fazer este filme, no sentido de procurar respostas para a questão: que mundo é este onde a vida humana vale menos do que a salvação de um morto? Eu estava particularmente interessada nas doenças da sociedade, nas monstruosidades escondidas e nas transformações do relacionamento humano.

New Territories mostra um cruzamento entre as reminiscências de uma China ancestral, com o seu interesse pelo enterro dos mortos, com a atual, que se cruza fortemente com o capitalismo ocidental. Ficou surpreendida com essas contradições?

New Territories é um conto de fadas que desdobra-se num mundo contemporâneo de racionalidade e economia de mercado. Esta contradição é o coração da maneira moderna de viver. A violenta entrada da economia de mercada na China “comunista” criou um tipo de colisão inesperada. A cultura de individualidade é um conceito muito novo para os chineses, que estiveram durante um longo período a viver a utopia da coletividade.

Esta curiosa mistura de racionalidade mercadológica, graciosas tradições e futilidades formam um paradoxo que dá à China uma posição única no mundo. Eu não fiquei surpresa por isso, mas muita interessada em utilizar o retrato moderno do país como uma figura metafórica para falar sobre a globalização e os seus danos..

Em termos de registo cinematográfico, optou pela valorização de uma forma não linear de abordar o assunto. Não é totalmente documental, mas tampouco é um trabalho de ficção…

A ideia principal do filme é criar algo “entre dois mundos”: entre a vida e a morte, entre o real e o irreal, entre o documentário e a ficção – um novo território, uma espécie de limbo com uma dramaturgia fantasmagórica.

Eu também queria dar à essa história um tratamento estético radical. A ideia de desaparecimento e ausência deviam ser omnipresentes como uma encarnação que é invisível, que é, na realidade, um velório impossível. A construção do filme funciona sobre a frustração e tenta criar um suspense com elementos de thriller com pobres e anedóticas figuras da vida quotidiana. O objetivo do filme é encarnar uma iniciática viagem mental, algo próximo de uma experiência de inconsciência, de hipnose, de um filme sensorial. Eu defendo a ideia de que o cinema deveria ser uma experiência física, mesmo nas obras de ficção.

Já tem novos projetos?

Eu já comecei a rodar o meu segundo filme na Sicília e em Lampedusa. The Neverland será como o meu segundo capítulo europeu sobre migrações, uma ficção e um filme musical rodado dentro dos barcos que trazem os imigrantes e nos centros de refugiados. Yilin Yang, a narradora de New Territories, vai desempenhar o papel principal, uma prostituta chinesa que procura pelo seu marido desaparecido na “terra do nunca”…

 

 

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