Quinta-feira, 28 Março

Uma entrevista histórica com António-Pedro Vasconcelos


Eventualmente o melhor realizador português a reunir qualidade com sucesso de público, António-Pedro Vasconcelos acaba de ver lançado seu mais novo trabalho de ficção, “Os Gatos não Têm Vertigens“. Mais uma vez, o investimento é forte no storytelling, criando uma abordagem emocional da relação insólita que se cria entre um adolescente desajustado e com uma família disfuncional, com uma simpática velhota que acaba de se tornar viúva e perde todas as suas referências. Com vários sucessos no currículo (O Lugar do Morto, Os Imortais, Call Girl, A Bela e o Paparazzo) pode estar a amealhar mais um.

Nesta conversa com o C7nema, no entanto, o tema foi outro. Aqui foi-se buscar a sua longa experiência no meio cinematográfico, desde os anos que viveu em Paris e viu de perto o surgimento da Nouvelle Vague, a criação da Cinemateca Francesa e o trabalho fundamental dos críticos dos Cahiers du Cinéma, até o surgimento de um novo cinema português no momento em que a longa de ditadura de António Salazar caminhava para o seu fim. A história que se segue não se encontra em nenhum filme, mas há lugar para personagens de luxo – François Truffaut, Henri Langlois, Buster Keaton e António da Cunha Telles. Para além disto, Vasconcelos discorreu sobre as suas conhecidas ideias sobre a situação do cinema português e a sua crónica falta de público, para além do estado que considera “lamentável” da crítica feita em Portugal.

Paris, anos 60: Nouvelle Vague

Fui Para Paris em 1961, com uma bolsa de estudos. Fui o primeiro bolseiro de cinema da Gulbenkian. Fiquei lá dois anos e alguns meses – só vinha cá nas férias e no Natal. E o que eu quis fazer neste período, fundamentalmente, foi ver filmes. Era uma época extraordinária, foi a época que surgiu o novo cinema francês, a Nouvelle Vague. Um pouco por todo lado havia novidades, a renovação do cinema inglês, uma nova geração de cineastas italianos e, portanto, eu segui essa nova onda de cineastas.

Foi também a época dos últimos grandes filmes americanos que tinham sido descobertos pelos críticos dos Cahiers du Cinéma – Howard Hawks, Alfred Hitchcock, Otto Preminger, Samuel Fuller, Elia Kazan, Vincent Minelli. Eu passava o dia nas salas a ver os filmes que estreavam, onde travei conhecimento também com a cinematografia japonesa, com Ingmar Bergman, Luís Buñuel. A partir das 18h fechava-me na cinemateca e via mais três filmes. Portanto via coisas que eu não conhecia, era a história do cinema – desde o princípio até os anos 60 – e isso foi algo precioso.

François Truffaut, um dos pilares da Nouvelle Vague © Pierre Zucca

Até porque eu tinha a opção de ficar na escola de cinema ou cá fora a fazer a aprendizagem vendo os filmes dos mestres. E fui muito influenciado pela Nouvelle Vague. Na altura a teoria era de que o que era preciso era uma “ideia na cabeça e uma câmara na mão”. E fazer filmes sinceros – a ideia de que não era preciso ficar dez anos a fazer de assistente ou frequentar uma escola. No cinema era mais importante a sinceridade do que a técnica. Quando voltei para Lisboa e comecei a fazer cinema, no entanto, faltava-me o outro lado, que tive de aprender a minha custa. Mas achei que foi uma boa escolha.

A Cinemateca Francesa, os Cahiers du Cinéma e a invenção da cultura cinematográfica

Nessa altura também conheci o Henri Langlois (criador da Cinemateca Francesa, a primeira do mundo). Ele tinha começado em 1938 e foi quem garantiu que os filmes antigos fossem mostrados. Foi uma coisa importantíssima porque formou a primeira geração de cineastas e a primeira que percebeu que existia um passado. É como um pintor impressionista que pode ir a um museu e ver algo feito no passado. Antes isso não existia, não se viam filmes antigos. E depois começam a descobrir os grandes mestres. Mesmo os mais recentes, sobre os quais ninguém falava.

A sessão de Buster Keaton foi um exemplo. Em 1962 Langlois fazia muitas homenagens como forma de recordar os filmes e fez uma homenagem a ele. E ele estava presente e foi impressionante, porque se estava ali com um homem que era um génio e que estava completamente esquecido há mais de 30 anos e que achava que nunca mais ninguém se iria lembrar dele e de seus filmes. Então aparece alguém que diz que esse homem é um génio e organiza uma mostra na cinemateca. E, de repente, uma sala lotada o aplaude em pé, foi uma sessão emocionante. E assim como ele muitos outros cineastas foram redescobertos, com Erich von Stroheim, David Griffith.

Era um trabalho conjunto entre ele e os críticos dos Cahiers. Ele passava os filmes e os outros iam lá entrevista-los, os velhos realizadores, que até ali ninguém tinha levado a sério. Truffaut levou anos a convencer as pessoas de que Hitchcock era um génio. Ele era visto como um realizador comercial, de filmes de suspense…

Henri Langlois e Alfred Hitchcock: o criador da Cinemateca e um dos seus homenageados

Durante muito tempo se achou que o cinema era um abastardamento do teatro. Mas depois que as críticas francesa e italiana reconheceram que o cinema era a 7ª arte, o cinema norte-americano passou a ser denegrido. Eles defendiam que o cinema deveria conter temas sociais ou político, e adulteram o que era realmente os grandes autores. E foi o Langlois que permitiu aos novos descobrir o cinema. Como um tipo que descobre o seu pai. Foi uma época extraordinária e eu tive a sorte de vivê-la.

De volta a Portugal: o fim da ditadura e o ressurgimento do cinema português

Cá em Portugal não se fazia cinema. Eu fiz um filme em 1969 que estreou em 1973 (Perdido por Cem), para além de algumas curtas e documentários. Além disto eu escrevia crítica, fazia publicidade, que me deu aquela formação técnica que eu não tinha. Não filmava mas meu desejo de cinema era consolidado. Ia a Paris ver filmes, tive amigos exilados lá até 1974.

Fui jornalista de dois jornais e ia cobrir os festivais, fiz entrevistas com gente como Otto Preminger, Truffaut, Fuller, Claude chabrol, Jacques Demy, Jean Rouche. O novo cinema do Brasil também foi brutal. Foi fantástico, conheci essa gente toda, Glauber Rocha, Ruy Guerra, Nelson Pereira dos Santos, Cacá Diegues, Leo Hirzman. Escrevi também para a Letras e Artes entre 1969 e 1970 e O Cinéfilo – de 1973 a 1974.

António da Cunha Telles, o inaugurador do cinema novo português

Nesta altura António da Cunha Telles aproveita as ondas dos novos cinemas e produz em Portugal Os Verdes Anos, do Paulo Rocha (1963) e Belarmino, do Fernando Lopes (1964). Ele tinha recebido uma herança e investiu dinheiro nisso. Ao mesmo tempo, tinha boas relações com a imprensa, tinha estudado no IDHEC, em Paris, e fez estes filmes com dinheiro próprio, ao mesmo tempo produziu algumas obras francesas, como o segundo filme do Truffaut, por exemplo (Angústia, lançado em 1964). E filmava cá: ele tentou internacionalizar o cinema português, o que era muito difícil. Não havia público ou, pelo menos, espetadores suficientes, não havia dinheiro e ainda havia a censura. Então o cinema português parou.

No final dos anos 60, já com Marcello Caetano, ele percebe que há uma geração que é difícil ignorar, que é a nossa. Foi aí que fiz meu primeiro filme, com apoio da Gulbenkian, com uma cooperativa subsidiada pela Gulbenkian, que havia decidido patrocinar o cinema.

O próprio Manoel de Oliveira é recuperado e João César Monteiro, mais tarde, também começou lá. O Manoel de Oliveira nesta altura tinha uma única longa-metragem, Aniki Bobó (1942), e depois nós vamos recuperá-lo e arranjamos dinheiro para ele fazer em 1971 O Passado e o Presente e, em 1974, o Benilde ou a Virgem Mãe. O Estado percebeu que era impossível impedir-nos de fazer os filmes ou censura-los, pois a Gulbenkian nos dava dinheiro. Então eles decidem criar um fundo de cinema – com 15% tirado da venda dos bilhetes de cinema.

O fundo de cinema foi criado para o Estado ter controlo sobre a produção. O acordo com a Gulbenkian era de três anos e, depois deste tempo, em princípio não haveria muito dinheiro e portanto o estado cria um fundo de cinema e um Instituto para o controlar. Era do estilo ‘eu vos arranjo dinheiro, mas decido o que é que se filma’. E o que é extraordinário é que esse fundo acabou por nunca funcionar. Os primeiros filmes por eles aprovados não chegaram a ser filmados porque, no entanto, ocorre o 25 de abril nesta altura. E aí foi tudo revisto…

Manoel de Oliveira, recuperado nos anos 70 depois de 30 anos sem filmar

A guerra dos subsídios: o Estado e a tutela do gosto

Mesmo assim se conseguiu fazer alguns filmes. De qualquer forma, o balanço que eu faço hoje daquilo que foi feito em Portugal depois do 25 de abril é francamente dececionante. Tivemos críticos, cinéfilos e uma geração brilhante, depois o cinema politizou-se muito e houve um radicalismo político revolucionário, que era típico da época. O problema é que depois, quando isso tudo caiu, essa geração passou para o radicalismo estético e aproveitou este sistema, criado pelo estado fascista, que é uma aberração.

É uma guerra que eu tenho há 30 anos porque eu sou contra, eu não acho que o Estado tem que ser o polícia do gosto. Não têm que ser eles a decidir quem filma e quem não o faz. E a maior parte dos cineastas defende que sim e acomodou-se a isso, razão pela qual são feitos filmes baseados em critérios que ninguém entende. Existem lobbys junto dos júris que decidem quem receberá recursos para trabalhar.

Esta ideia é defendida pela maioria dos meus colegas que, aliás, há quatro anos publicaram uma carta aberta num jornal a dizer que o Ministério da Cultura não pode abrir mão de dizer quem filma e quem não filma – para “proteger os realizadores do peso incómodo do público” Não estou a inventar, isso está escrito!

João Canijo, um dos poucos cineastas portugueses que admira

Se havia criado na Europa uma ideia bizarra de que cinema com sucesso é comercial e que cinema que não vende é de autor. Essa ideia matou o cinema europeu e em Portugal atingiu-se o seu expoente máximo. Criou-se uma dicotomia entre os artistas que tinham público, tinham mercado e o resultado é que hoje em dia o cinema francês já não tem a mesma projeção. O cinema europeu perdeu o controlo da distribuição mundial e consequentemente deixou de circular.

Em Portugal isso atingiu extremos. O cinema português nem é visto cá nem no estrangeiro. E mitificou-se a ideia de que este cinema é, de alguma forma, necessário. Ninguém vai ver. Arthur Serra Araújo, Tiago Carvalho, António Ferreira, são cineastas de que gosto e estão excluídos do sistema. Até mesmo dentro do lobby há gente boa, gosto do João Canijo, por exemplo. Já de outros prefiro não falar…

A crítica de cinema em Portugal

A crítica em Portugal é uma lástima, condicionada por preconceitos, nomeadamente esse, de que o quem tem público não faz cinema de autor, a não ser no caso do caso do cinema americano. Se for americano já aceitam. Pode não gostar do Spielberg, ou do Kubrick, mas eram autores. Eles têm público. Essa ideia foi letal para o cinema português e a crítica embarcou nisto completamente.

O Truffaut e o Godard, quando eram críticos, tinham toda uma visão do mundo. Aqui em Portugal, além de não terem nada disto, não fazem ideia do que estão a falar. Como costumo dizer, não sabem distinguir um travelling de um ovo estrelado. Assim como o cinema português não cria nenhuma empatia com o público, os críticos de cá também não o fazem. Não servem de guia para os espetadores.

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