Quinta-feira, 18 Abril

Entrevista a Joshua Oppenheimer, o realizador de «Ato de Matar»

“Foram os Estados Unidos que encorajaram Suharto para invadir Timor”

Durante 3 anos, o realizador americano filmou dezenas de membros dos ‘esquadrões da morte’ responsáveis pelo genocídio na Indonésia entre 1965-66. O documentário ganhou dezenas de prémios internacionais, incluindo o Globo de Ouro e foi nomeado ao Óscar.

Qual a origem deste projeto tão longo quanto ambicioso?

Na verdade, este tornou-se possível depois de entrar em contacto com sobreviventes do genocídio de 1965-66. Havíamos feito juntos um filme em 2001 chamado ‘The Globalization Tapes‘, com um grupo de plantadores na Sumatra que documentavam a sua luta para organizar um sindicato multinacional.

E o que se passava exatamente nessas plantações?

Eles espalhavam um herbicida sem qualquer proteção e acabavam por ficar sujeitos ao veneno. Muitos deles morriam na floresta.

Por isso fizeram o sindicato…

Eles precisavam mesmo desse sindicado, mas tinham receio de o organizar porque os responsáveis ainda estavam no poder. Os seus pais e avós tinham formado um sindicato forte até 1965. E foram mortos por isso. Receavam que isso voltasse a acontecer. Depois de fazermos esse filme concordamos em explorar a razão desse medo. No fundo, o que significava viver com as várias posições de poder em seu redor.

E onde eram essas plantações?

Em Medan, no norte da Sumatra, onde fizemos ‘O Ato de Matar’. Logo a seguir regressei, em 2003, para fazer esse filme com os sobreviventes. Como se espalhou o rumor de que estaríamos interessado sem reportar o que acontecera em 1965 e os militares já não deixariam os sobreviventes participarem.

Qual é exatamente a postura dos militares?

O exército está estacionado em todas as pequenas cidades na Indonésia. Muitos deles estavam sob vigilância. No entanto, os sobreviventes encorajaram-me a não desistir. Até porque muitos dos dirigentes dos anteriores esquadrões da morte continuavam a deter posições de poder. E estariam na disposição de relatar como os seus entes queridos morreram.

Os próprios criminosos?

Exatamente. Mas não sabíamos se seria seguro abordar esses indivíduos. Chegamos até eles de uma forma muito cautelosa. Mas ficamos espantados como todos eles estavam abertos a relatar as suas façanhas. E desejosos de contar o que haviam feito.

Até mesmo com algum orgulho e desplante, como vemos no seu filme…

Exato. Com desplante. E a contarem os detalhes mais macabros. Muitas vezes com um sorriso nos lábios. Contariam essas histórias diante das suas mulheres e filhas, até mesmo nas duas netas…

O que não se percebe é toda essa impunidade. Como explica isso?

É fácil. Mas é isso mesmo, a impunidade. Eles iam ao cúmulo de me convidarem a mostrar-lhes o local onde haviam feito esses massacres. Eu fui com eles e ali mesmo fizeram demonstrações espontâneas de como haviam matado estas pessoas.

E na altura não existiam organizações humanitárias em redor para denunciar essas práticas?

Por acaso existiam várias organizações humanitárias no norte da Sumatra. Sendo que uma delas era liderada por um dos cabecilhas dos esquadrões da morte. Há uma cena que ficou para os extras do DVD – espero que esteja incluída na versão portuguesa – com um editor de jornal que se gabava de dar o comando para as execuções. E quando lhe perguntei se ele tinha morto alguém com as suas próprias mãos, ao que ele diz: “eu nunca poderia matar ninguém com as minhas próprias mãos; eu sou um inteletual, sou um poeta. Eu era o diretor do Festival de Cinema da Indonésia”.

A sério?!

Sim, isso é verdade. Ele era produtor, argumentista e editor de jornais. “Eu acredito no humanismo universal”. Ao que lhe perguntei o que significava para ele “humanismo universal”. E a resposta dele foi: “humanismo universal significa Direitos Humanos. E, se não me engano”, dizia ele, “estou à frente da maior organização de direitos humanos da Sumatra”. E está mesmo.

Ou seja, um conceito inteiramente novo de Direitos Humanos…

Sim, totalmente hipócrita. Este é um sintoma de total impunidade. Algo que eu nunca tinha visto. Ainda por cima com o contraste de sobreviventes que não podia falar e autores desses massacres que gozavam desta impunidade. Neste contraste parece que tinha chegado à Alemanha 40 anos depois do Holocausto e descobrir que os nazis ainda estavam no poder.

É aterrador. E como foi que decidiu partir para esse projeto?

Mostrei esse material aos sobreviventes que se mostraram interessados, bem como à comunidade dos direitos humanos da Indonésia. E todos me incentivaram para continuar. Isto porque todos os indonésios que vierem estas imagens terão de reconhecer o que foi feito. Foi assim que o filme chegou à Indonésia.

Quando tempo decorreu desde que começou a recolher esses depoimentos?

Durante 2003 a 2005 filmei todos os autores de massacres que pude encontrar no norte de Sumatra.

Sofreu algum tipo de impedimentos?

Nem por isso. O próprio exército que sabia o que estávamos a fazer não se atreveu a envolver-se e a dizer a estas pessoas que não poderiam ser filmadas. Por isso continuamos a filmar.

Como foi que chegou a esta incrível personagem do Anwar que acaba por ser o grande protagonista do seu filme?

O Anwar foi o 41ª autor de massacres que conheci e acabei por me juntar mais a ele. Em parte porque a dor dele estava mais à superfície. Quando ele dança no telhado de uma casa, logo no início do filme, depois de encenar como executava as suas vítimas, acho que é um dos símbolos mais grotescos de imunidade que já vi. Mas ele também diz que consegue dançar porque toma drogas para esquecer o que fez.

Acha que está arrependido?

Não sei, mas a consciência do que fez está lá. Pelo menos sabe que tem esse sentimento de culpa. Diz que tem pesadelos e acorda aos gritos. Mas essa cena da dança foi logo no primeiro dia em que me encontrei com ele.

Chegou a apurar quantas pessoas terá ele morto com as suas próprias mãos?

Talvez um milhar. Isto porque os números que ele me deu referia uns 5000. Achei por bem dividir esse número por cinco.

Uma das cenas mais perturbantes do seu documentário será quando ele demonstra como executava as suas vítimas enrolando um cabo ao pescoço delas e puxando com vigor. E com todos os pormenores! Quase como se estivesse a reviver a cena com um sorriso nos lábios. Parecia existir ali uma espécie de êxtase…

Veja bem, por um lado o Ato de Matar é um ato humano; por outro é sempre algo traumático. As outras espécies animais são capazes de matar sem ressentimento, mas julgo que os humanos não escapam a algum traumatismo.

Sim, calculo que para qualquer ser humano.

É um pouco como os pilotos de drones, que pensam num videojogo quando matam as suas vítimas. O próprio Barack Obama terá um discurso justificado quando decide quem será morto por um ataque de drones. Pelo menos para se distanciar do Ato de Matar. Para Obama o Ato de Matar será uma espécie de filosofia, muito superior a homicídio. Mas no caso de Anwar, ele disse que dançava depois de sair do cinema, depois de ver um filme do Elvis Presley. Ele dançava ao atravessar a rua para depois poder matar com alegria. Para ele, o lado de encenação fazia parte do Ato de Matar. E acho mesmo que no Ato de Matar existirá mesmo esse êxtase profundo de que falava. É como ter um incrível poder divino de poder tirar a vida a outro ser humano.

Como reagiu ele quando lhe mostrou o que filmara?

Na verdade  ficou bastante perturbado. Mas não disse que era algo horrível. Apenas referiu que não gostou das roupas, que o chapéu era uma escolha errada, que deveria ter pintado o cabelo.

Como foi que encenaram todo esse processo em que simulam as execuções que de facto ocorreram?

Foi um processo em que filmávamos e víamos logo o resultado. E aí eu percebi que ele tentava fugir à dor. E se tiver ocasião de ver a versão longa, que está aqui contemplada nos Prémios do Cinema Europeu, verá esse processo cinematográfico desenrolar-se com maior detalhe.

Acha que essa reação era uma forma de expurgar a sua culpa?

Talvez. Acho que sim. Talvez não seja absurdo que essas cenas de ficção se tornem cada vez mais absurdas e grotescas. Eu filmo-os dentro de um sintoma de impunidade.

Ao ver o filme pela primeira vez não pude deixar de recordar como o povo de Timor Leste sofreu também um massacre semelhante com a ocupação indonésia. Existirá aqui alguma ligação?

Bom, em 1965, o exército tomou o poder na Indonésia, instaurando uma espécie de regime fascista militar. Em 1975, dez anos depois, invadem Timor Leste e basicamente fazem o mesmo que fizeram na Sumatra.

Pelo menos a polícia militar era a mesma, a Pancasila…

Sim, a mesma polícia de Suharto. Curiosamente, foram os Estados Unidos que encorajaram Suharto para invadir Timor Leste. Kissinger e Gerald Ford terão visitado a Indonésia pouco antes da invasão e encorajado Suharto para avançar com a invasão. Apenas disseram para esperar que eles partissem… Se não estou em erro, no dia seguinte começou a invasão. Por isso, estou curioso para perceber como o filme poderá ser encarado em Portugal. Até devido à ditadura de Salazar.

Sim, essa é uma sombra na sociedade portuguesa, ainda que não com essa extensão.

As atrocidades de Salazar poderão não ser tão impressionantes como as de Suharto, mas mesmo assim fez parte do movimento fascista internacional que se vivia na altura, entre os anos 30 e 40.

Obviamente, este é um filme que tem ganho um impacto muito profundo, com os Prémios do Cinema Europeu, os Óscares e claro inúmeros prémios pelos festivais internacionais em que tem sido exibido. Quando estava a fazer o filme, conseguia aperceber-se do tremendo impacto que iria ter no público?

Nunca imaginei o impacto que o filme está a receber. Nem sequer na Indonésia, onde o filme está a mudar a forma como as pessoas falam do seu passado.

E de que forma o mudou a si, como realizador e ser humano?

(pausa)… Esta foi a experiência mais marcante em toda a minha vida. E passei sete anos e meio a fazer ‘O Ato de Matar’. Acho que me modificou de forma que provavelmente passarei o resto a minha vida a perceber. É claro que montar o filme e estreá-lo tem sido parte desse trabalho. Mas no fundo acho que me tornou mais cauteloso na hora de julgar seja quem for. Não quero dizer que sou contra a justiça. Precisamos de justiça. Mas a justiça é um ritual porque as sociedades passam para compreender certos rituais de comportamento até ao reino do proibido. Até chegar ao ponto de dizer que esta pessoa fez coisas monstruosas, mas será esta pessoa um monstro?

É difícil não o considerar. E é preciso alguma coragem. Sobretudo quem vive nessa sociedade.

Desde logo para mostrarmos que não somos como eles. Quem me diz que se tivesse tido nos anos 50 na Indonésia não teria tido as mesmas decisões que ele tomou em 1965? Mas tenho muita sorte por não ter de saber isso. Mas se ele é um monstro – se é que é um monstro – eu dependo de monstros como ele para me vestir, encher o tanque de gasolina. Tudo o que compramos chega-nos do mundo global. Daquelas pessoas que trabalhavam nas plantações. Pessoas que continuam com medo por viverem em países que em que existe uma massiva violência política; onde os autores de crimes venceram, criaram regimes de medo em que não têm sequer o custo humano daquilo que compramos.

E que morrem a produzir óleo de palma…

Óleo de palma que se vende a alguns cêntimos o barril, ao passo que a eles lhes custou a vida a produzi-lo. As vidas deles não estão incluídas no preço de venda do óleo de palma. É muitíssimo custoso fazer óleo de palma, apesar de custar apenas alguns cêntimos. E nesses cêntimos vai parte para Anwar e homens como ele, gangsters, assassinos que mantém as pessoas com medo. Por isso, este filme não é uma realidade distante. Apesar do glamour dos festivais em que o filme é exibido, mostra na verdade do outro lado, o seu oposto.

Acha que este filme pode vir a ser considerado uma referência em termos de direitos humanos?

Este é um filme que grita por justiça. O material que filmei – cerca de uma centena de horas – é o maior arquivo que existe sobre essa matança. Foi recentemente publicado um relatório de 800 páginas denunciando esse genocídio, exigindo uma desculpa formal, algo que até agora o governo tem ignorado. Nós temos feito um arquivo sobre esse material sobre os direitos humanos, de forma a que possa servir de provas.

Só para terminar: até que ponto este material estará na base de algo que queira vir a fazer?

Irá servir de duas formas: estou agora a terminar um filme sobre uma família de sobreviventes que soube quem matou o seu filho, um dos 40 primeiros autores que filmei. Terá o título não confirmado de ‘The Look of Silence’ e deverá estrear o ano que vem. O filme mais novo, nascido depois da matança quer saber o que aconteceu e envolver toda a gente que esteve relacionada com a morte do irmão.

Já está filmado?

Sim, estou na derradeira parte da montagem. Este é um método que quero usar quando regressar aos Estados Unidos. E talvez fazer algo não relacionado com genocídio, mas com as fantasias que escondem a realidade mais dolorosa. Quero usar esse método nesse projeto.

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