Sexta-feira, 26 Abril

Entrevista com Salomé Lamas, realizadora de «Terra de Ninguém»

A estrear comercialmente nesta quinta-feira (28/11), o documentário Terra de Ninguém já circula com um longo e premiado percurso desde que foi escolhido o Melhor Filme português da edição de 2012 do Doclisboa. O filme baseia-se numa sessão de entrevistas com um único personagem mas, aquilo que a princípio pode parece redutor, ganha uma enorme dimensão devido ao entrevistado em si, o ex-soldado e mercenário Paulo de Figueiredo, que terminou os seus dias como sem-abrigo, em Lisboa. Em entrevista ao C7nema, a realizadora explicou como o conheceu, falou sobre o reconhecimento que a obra tem recebido e sobre os seus novos projetos.

Terra de Ninguém traz um depoimento verdadeiramente impressionante e que soa carregado de autenticidade. Em que circunstâncias é que conheceu Paulo de Figueiredo e quando é que percebeu que queria fazer um filme com ele?

O Paulo foi‐me apresentado pelo Miguel (Lamas), sociólogo cujo trabalho admiro e sem o qual este filme não existiria. O Paulo e o Miguel tinham uma amizade. Desde a primeira vez que ouvi falar sobre ele, o que ocorreu fora do âmbito de filmes ou do que quer que seja, que me coloquei essa questão. A partir desse momento persegui, literalmente, essa ideia.

O processo já estava avançado, mas percebi verdadeiramente que queria fazer um filme com o Paulo quando ele concordou em fazê-lo. Neste momento ele disse-me “estou a utilizar‐te para contar a minha história” e eu respondi: “Está certo, eu estou a utilizar‐te para fazer um filme“.

Tornar assuntos privados em discussão pública não é algo que deva ser feito de ânimo leve. Aqueles que escrevem a história devotam demasiada atenção aos tão falados eventos escutados pelo mundo fora, ao mesmo tempo que negligenciam os períodos de silêncio.

A forma como a memória (privada) se articula com uma narrativa histórica é extremamente complexa e problemática. O trauma está fora da memória, fora da história. É irrepresentável, não memorável e, ao mesmo tempo, inesquecível. Como poderemos conhecer o trauma, ou seja, como é que a sua irrepreensibilidade pode ser representada? E não será a própria história um contentor original do trauma? O trabalho da memória e o seu processo memorial de transformação do tempo e espaço, do político, do público e do privado, da nação e da família, não será este um processo do desejo?

Como funcionou a organização das perguntas e a construção do documentário? Foi tudo pensado e planeado de antemão ou foi modificando na medida em que ouvia as declarações do Paulo de Figueiredo?

As perguntas, ou o guião possível, surgiram de uma conversa inicial com o Paulo, que serviu para testar o dispositivo, comunicar a ele as minhas intenções, de escrever um guião para a rodagem. Neste primeiro encontro foi claro o meu descompasso. E foi‐me dito algo como “tens de ir para casa estudar (…) não tens ideia no que te estás a meter”.

Depois de refletir apercebi‐me que este era o único dispositivo possível para este filme que respeitasse o Paulo, o hipotético espectador e o processo de feitura do próprio filme.

Procurei um espaço neutro no qual nem eu nem ele tivéssemos referências. Filmar para documentário é estabelecer uma relação para ser filmada entre a câmara e dois corpos (pelo menos). Ao permitir uma entrevista, a relação de poder entre o sujeito do filme e a realização é atenuada. Ao sujeito é dada a palavra e a possibilidade de escolher como interagir com o
realizador e o espectador. Alguém irá falar e alguém irá escutar. A conversa tem lugar no presente “aqui e agora” e a ideia era que o espectador pudesse sentir aquilo que eu estava a sentir naquele momento. Se isso acontecer, o filme é bem-sucedido.

Estabeleci que a rodagem teria a duração de 5 dias, nem mais, nem menos. Estes 5 dias marcam a estrutura do filme. Uma estrutura quase literária pontuada com capítulos, virgulas e pontos. A partir do momento em que o Paulo se senta na cadeira, adquire a consciência de que será julgado, não por mim, que ousei não julgar para que este processo coubesse ao espectador. É um filme misterioso em que muitas das questões levantadas, que são maiores do que o Paulo e do que a realização. É um filme onde as expectativas da realização se encontram com as expetativas do sujeito do filme.

Como é que lidou com as questões da alta política implícitas nas declarações dele, principalmente no que se refere aos espanhóis?

A maioria das declarações do Paulo infelizmente não é estranha aos espanhóis. Por outro lado, o desconforto da sua narrativa, a forma como interroga o nosso conforto e a hipocrisia que coexiste com a suposta democracia, ou mesmo com os discursos que à sombra da democracia se constroem é, no mínimo, desconcertante.

Consta que Paulo de Figueiredo dedicou‐se a uma instituição de Sem‐Abrigo (GIMAE) e obteve uma espécie de redenção do seu passado. Alguma vez pensou em explorar este outro lado no filme?

Bom, isso foi como escreveu Friedrich Nietzsche em “Assim Falava Zaratustra“: “Redimir os passados e transformar tudo, ‘foi’ num ‘assim o quis’: só isto é redenção para mim.

Sim, é certo, mas se “obteve uma espécie de redenção do seu passado” é uma questão para o Paulo e para aqueles que o acompanharam. O filme abre precisamente com a questão: “O que achas que estamos a fazer aqui?“, ao que Paulo responde: “Quis contar a história da minha vida e a partir dai cada um que pense o que quiser“.

Terra de Ninguém aborda a complexidade de Paulo e não é possível afirmar com clareza que o filme siga um caminho e não o outro (independentemente do que estes possam ser e do que se possa dizer sobre o filme). Na cena final, de exterior, que poderia ser o início de um outro filme, é visível o companheirismo entre Paulo, Chiquinho e Alcides (os dois últimos, africanos ‐ todos eles sem-abrigo).

Este momento reequaciona e desconstrói toda a narrativa escutada anteriormente. Nunca pensei incluir a GIMAE (seria escolher um enquadramento institucional para alguém que recusava ser enquadrado) – pensei, sim, em incluir um amigo próximo de Paulo, alguém que nunca se preocupou com questões de identidade. Depois as coisas não seguiram esse
caminho.

O seu trabalho foi escolhido o melhor filme português do Doc Lisboa no ano passado, passou pelo Fórum do Festival de Berlim e pelo Cinéma du Réel, entre outros. Alguma vez pensou que o seu trabalho iria ter essa repercussão? Que expetativas tem para estreia comercial de Terra de Ninguém depois do prémio no DocLisboa?

Não e sim. Não tenho expetativas. Os filmes que fazemos são para serem vistos. A repercussão que os filmes têm ou não infelizmente nem sempre depende unicamente destes. Tentámos fazer um filme que coloca questões e que, para tal, procura um espectador ativo.

Está a trabalhar em novos projetos?

Acabei de realizar uma curta‐metragem, Teatrum Orbis Terrarum, que estreou recentemente no DocLisboa e no Festival de Roma (secção Cinema XXI), projeto que teve também uma versão em instalação apresentada na Sala Polivalente do Museu Nacional de Arte Contemporânea – integrada na programação do Festival Temps d’Image.

Encontro‐me neste momento a desenvolver uma docu-ficção para rodar no Peru com a produção de O Som e a Fúria. Neste momento o projeto encontra‐se comprometido devido à situação que se vive no setor audiovisual, arriscando uma estratégia de coprodução internacional.

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