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Entrevista a Licínio Azevedo, o realizador de «Virgem Margarida»

Chega hoje aos cinemas portugueses Virgem Margarida, o mais recente filme de Licínio Azevedo, realizador brasileiro radicado em Moçambique.

Baseado em personagens reais, mas com um enredo ficcional, na obra – que passou por certames como o Festival de Toronto – estamos em 1975, no pós-independência de Moçambique, e acompanhamos um grupo de mulheres de «má vida» que são levadas por militares para um campo de «reeducação social» – que promete criar a «nova mulher moçambicana» fora dos estereótipos e ideais colonialistas. Nesse grupo de mulheres está Margarida, uma jovem virgem que foi detida por engano.

O C7nema teve a hipótese de entrevistar Licínio Azevedo. Aqui ficam as suas palavras.

A «reeducação social» no pós-independência não afetou apenas as prostitutas, mas também muitos dissidentes intelectuais, jeovás, homossexuais, criminosos e até mães solteiras. Porém, optou apenas por contar a história das prostitutas e em maior detalhe e o caso da Margarida, que de certa maneira já tinham sido abordados no seu documentário A Última Prostituta. Ou seja, qual a génese deste projeto e porque razão optou por esta direção? E já agora, em que medida esta história, da Margarida e das prostitutas, ganha em ser contada de forma ficcional, em oposição a um registo documental?

Optei por contar a historia de Margarida, num centro de reeducação de prostituas, porque era a historia que eu conhecia e que me emocionou. Tudo começa com uma fotografia do meu amigo Ricardo Rangel, grande fotógrafo moçambicano, recentemente falecido. Há muitos anos, mostrou-me a fotografia de dois militares (da Frelimo) recém-chegados à cidade, logo após a independência, a escoltarem uma mulher para ser enviada para um centro de reeducação de prostituas. Ironicamente ele deu o titulo à foto: A Última Prostituta.

Inspirado pela foto, fiz, há cerca de 15 anos, um documentário sobre o tema da reeducação destas mulheres, com o mesmo título. Ao contrário dos meus outros documentários, foi um filme bastante clássico: apenas depoimentos de mulheres que estiveram lá, como reeducandas, e de uma comandante de um centro. Devido à gravidade do tema, não pareceu correto abordar de outra maneira que não esta. Foram as participantes deste documentário que contaram-me a história da Margarida, uma delas chorou ao fazê-lo. Foram apenas algumas poucas frases que sobre Margarida, o suficiente para me fazer ver que ali havia uma grande história. Para mim o tema é que determina o género. E, também, por tratar-se de um passado bastante distante, sobre uma personagem já desaparecida, achei que a história seria melhor aproveitada e teria mais impacto como ficção. Escrevi o guião a partir do pouco que elas me contaram sobre a Margarida, incluindo muito das experiencias vividas por elas no centro, e servindo-me de algumas delas como inspiração para personagens.

Como se processou a escolha das atrizes, em particular da Margarida, da Rosa e da Maria João?

Em Moçambique não temos atores profissionais de cinema, pois quase não há produção de ficções. O casting, feito em Maputo, foi bastante demorado, várias fases, e procuramos as atrizes entre dançarinas, grupos de teatro de rua, amadores em geral. Foi assim que encontramos a actriz para Rosa, que inicialmente fez o teste para comandante, mas decidi dar-lhe o papel que desempenha. Maria João é de um grupo de teatro que faz teatro de intervenção. Margarida foi o mais dificil. Em Maputo, todas as candidatas tinham atitude muito urbana, normal devido ao facto de não serem profissionais. Não consegui encontrá-la em Maputo, apenas em Chimoio, na Província de Manica, onde foram feitas as filmagens, com testes feitos com jovens estudantes locais.

Li numa entrevista que chegou a acreditar que, através da revolução, era possível purificar o ser humano. Olhando para trás, acha que a “reeducação” era, em termos teóricos, algo positivo? Até que ponto a personagem da Maria João, que no final mostra a sua decepção, é representativa do próprio Licínio e da desilusão do sistema?

Realmente, naquele período revolucionário, logo a seguir a Independência, viamos com idealismo os processos novos, diferentes dos habituais. Por outro lado, na época, não havia informação alguma sobre o que se passava nos centros. Até o meu documentário, praticamente nada se falou sobre o tema. Foi nas filmagens de A Última Prostituta que soube como as coisas havia se passado. A decepção de Maria João representa um pouco a todas as pessoas que acreditavam que poderia haver frutos de um tal processo.

Apesar de estarmos perante um drama, o filme nunca esquece o humor, normalmente associado à personagem de Rosa. Quando escreveu o guião, como foi o processo de balancear o tom da obra?

O humor é algo inerente à minha vida. Em todos os momentos encontro motivo para rir. E penso que também é algo muito forte aqui em Moçambique. Lembro que durante a guerra, nos momentos mais dramáticos, sempre se encontra um motivo pra rir. É isto que aparece no filme. Não houve necessidade de balancear, foi completamente natural, como se, para mim, fosse impossivel criar uma barreira entre os dois momentos.

A certo ponto são introduzidos no filme pequenas situações que puxam para o misticismo (como a maldição da galinha), o que entra em conflito direto com o ambiente anti-superstição do regime socialista. Até que ponto essas superstições ainda estão enraizadas nas populações, ou será que «reeducação» também levou a que fossem progressivamente abandonadas?

O lado mágico faz parte da vida quotidiano dos moçambicanos. Quem não acredita que os crocodilos têm donos, que os feiticeiros montam hipopótamos, que um raio pode ser enviado por alguém contra alguém, não é verdadeiramente filho desta terra, mesmo que a realidade não seja exatamente assim. Para mim, é possivel traçar um paralelo muito claro com o realismo mágico latino-americano. E eu faço parte destas duas culturas. Vivi 25 anos na America Latina, estou há 35 em Moçambique.

Foi difícil reunir financiamento e condições para a produção deste filme?

Sempre é dificil reunir financiamento para um filme, seja pequeno ou grande., principalmente num país pobre. Penso que hoje a situação dos meus colegas cineastas portugueses não é tão diferente da nossa. Infelizmente, pois sem a participação de Portugal, Virgem Margarida não teria sido realizado.

O que é ser um realizador em Moçambique nos dias de hoje. Quão difícil é reunir as condições para filmar no país?

O realizador moçambicano é um idealista que acredita, contra tudo e todos, que é possivel continuar a fazer, que é necessário construir a memória visual do país. Em Moçambique não há fundos para cinema, imagine, portanto, as dificuldades de reunir condições para filmar.

Como analisa os recentes acontecimentos políticos em Moçambique (a questão dos raptos, a crise politico-militar) e que impactos vislumbra no país?

Penso que é uma situação passageira, que será resolvida a curto prazo, para o bem de todos.

Tem um novo projeto na agenda? Se sim, pode nos falar um pouco sobre ele?

Sim, estamos a trabalhar, com a UKBAR Filmes, de Portugal, na produção de O Comboio de Sal e Açúcar, adaptção para o cinema de uma novela que escrevi e foi publicada aqui, e também nos Estados Unidos, África do Sul, há vários anos. Foi um livro que escrevi logo após o fim da guerra, uma história inspirada numa situação que acontecia durante a guerra, mas totalmente ficcionada. O livro, o filme, é uma história de amor e guerra. Esperamos poder realizá-lo ao longo do proximo ano. Ganhamos o concurso do ICA para os PALOPS e temos já uma boa parte dos fundos necessários.