Terça-feira, 19 Março

Entrevista a Jérôme Enrico, realizador de «Nome de Código: Paulette»

 

Filme que teve a sua antestreia mundial na última edição da Festa do Cinema Francês (outubro de 2012) e acabou por ser o preferido do público. Em França foi lançado em janeiro e conseguiu levar mais de um milhão de espectadores às salas. No centro da história, uma desagradável velhota, racista e misantropa que, dadas as dificuldades económicas, decide ingressar no mundo do tráfico de drogas para ganhar uns trocos. De passagem por Lisboa durante a Festa, o realizador Jérôme Enrico conversou com o C7nema sobre a origem do projeto, a crise económica em França, a entrada de Bernadette Lafont e a sua paixão pelo filme brasileiro “Cidade de Deus”, que aponta como inspiração.

Como teve a ideia para essa mistura entre dois mundos tão diferentes? De um lado, uma senhora reformada, de outro traficantes de droga?

No início tratou-se de uma história verídica. Eu trabalhei com três estudantes a quem dava lições de cinema num “workshop” de escrita em Paris. Uma delas, Bianca (Olsen) (*) trouxe a ideia original. A verdadeira história não é exatamente igual e era sobre uma mulher de 77 anos que vivia num subúrbio de Paris, sem dinheiro para comprar carne, roupas ou outras coisas de que precisava. Então começou a vender drogas ao pé do edifício onde morava para arranjar algum dinheiro. Ela não chega a envolver-se com gangues como em “Nome de Código: Paulette”, isto foi apenas o começo da história. Depois começamos a pensar o quão divertido seria se puséssemos ela em contato com toda essa população dos subúrbios – e este foi o início da parte comédia da história.

Paulette não é guiada por códigos morais tradicionais, mas em outros momentos ela é vista a rezar e a confessar-se na igreja… Como vê essa contradição?

Isto é uma coisa divertida sobre ela. De um lado ela age como os homens, parece um “cowboy”, enfrenta os traficantes por causa do seu dinheiro. As velhotas em França, que aparecem representados pelas outras personagens, não fazem coisas destas! Apenas Paulette. Ela é uma mulher durona, faz negócios e é muito solitária.

Por outro lado fizemos esta mulher muito católica para tornar mais difícil o seu salto para o outro lado. Isto foi o início da ideia. Depois havia uma coisa muito importante para mim que era a moral do filme. As pessoas sem dinheiro, sem tempo para fazer outra coisa que não arranjar algo para comer, não podem ser gentis com os seus filhos e amigos. Paulette enquadra-se neste perfil e não gosta nem sequer do neto porque ele é “negro”.

Passo a passo, quando ela começa a ganhar dinheiro com o negócio das drogas, torna-se muito melhor com as pessoas à volta dela. Eu penso que isso é algo verdadeiro, que está em sintonia com o que ocorre na vida real. E é a moral do filme, acho. Gostei de começar com uma mulher muita católica a confessar os seus pecados a um padre… que é negro! (risos). Ela é muito contraditória. Ela é muito real, porque a antiga geração em França tinha esses problemas com todos os imigrantes e ela vive num bairro “tomado” por eles mas, de repente, negocia e lida com eles.

Uma cena do filme “Nome de Código: Paulette”

Você conheceu a verdadeira Paulette?

Não, eu vi uma reportagem na Zone Interdite, uma revista francesa, sobre ela. Mas isso foi depois de termos escrito a história. Ela foi apenas o ponto de partida.

Acha que a crise económica e as suas derivações são cada vez mais um tema crucial no cinema francês?

Acho que está ser importante em todos os cinemas. Em França, atualmente, que produz cerca de 200 filmes por ano, há cada vez mais filmes a abordar o assunto – alguns são comédias, outros dramas. São problemas que afetam toda a gente. Os novos não conseguem arranjar emprego, por exemplo. Em Portugal agora está mais difícil, mas em França temos os mesmos problemas. Temos três milhões de desempregados. É a maior média em 20 anos.

Portanto, acho que estamos todos no mesmo barco. Acho que cada vez mais existirão filmes sobre isso. Não sei como é em Lisboa, mas em Paris há gente a viver nas ruas por toda a parte. Cada vez mais. Há pessoas há viver em edifícios abandonados, andas alguns metros e encontras mais um. E isso no centro de Paris, não estamos a falar dos subúrbios.

Como foi a entrada de Bernadette Lafont?

Eu tive sorte com esse projeto, porque nem sempre é fácil transformar uma ideia em filme. O primeiro produtor a quem apresentei o argumento, Alain Goldman, apaixonou-se por ele e disse ‘eu quero produzir esse filme. Se você quiser começamos antes do final do ano!’. Depois começamos a falar sobre a personagem principal, Paulette. Foi uma longa discussão entre nós. Eu conheci muitas atrizes, inclusive Carmem Maura, que também foi testada para a personagem principal, mas o problema era o facto dela ser espanhola, o que tornava muito difícil de caraterizá-la como uma francesa racista. Talvez se o filme fosse feito em Espanha (risos).

Depois de longas pesquisas e testes com várias atrizes, Bernardette foi escolhida. Ela também queria muito fazer parte do elenco e até contactou o produtor neste sentido. E acabamos por verificar que ela era a escolha certa para fazer este filme. A sua maneira de falar e o facto dela própria ser uma mulher dura, de parecer um homem… (risos).

Quais são seus cineastas favoritos?

Bom, tenho uma série deles! Mas é curioso, porque há tempos passei uma temporada no Brasil com um primo que vive em Belo Horizonte e fiquei muito impressionado com um filme de um cineasta de lá. “Cidade de Deus”, de Fernando Meirelles. É um filme fabuloso. Não sou muito fã dos outros, quer dizer, “O Fiel Jardineiro” é um bom filme, mas não gosto do último, “Ensaio sobre a Cegueira” (**). Fiquei muito impressionado com aquele filme. Mas há diversos tipos de filmes que gosto. Fui inspirado particularmente pelas comédias italianas do pós-guerra, das décadas de 50, 60, 70. E pelo cinema inglês, que gosta de misturar comédias com abordagens sociais.

Está a trabalhar em algum projeto novo?

Sim, é uma comédia sobre uma menina de 14 anos perdida na Ucrânia e manda um SMS de lá e quer voltar para Paris, mas não é possível. Terminamos agora de escrever e estamos na fase de captação de recursos. Ainda não tem nome.

* Bianca Olsen também assina o argumento final
** Na altura da entrevista, “360” tinha sido lançado há pouco, mas já era o último filme de Fernando Meirelles.

Notícias