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Entrevista a Ângelo Torres e Marcantonio Del Carlo – ‘Tudo isto é Fado’ (2004)

Parte II– Entrevista a Ângelo Torres e Marcantonio Del Carlo

 

Ainda relacionado com a estreia do filme “Tudo Isto é Fado“, o c7nema manteve outra conversa a três. Ângelo Torres e Marcantonio Del Carlo foram os eleitos. O primeiro ainda vive a sobreexposição que o filme “Preto e Branco” lhe deu (estreado em Setembro do ano passado). O segundo, mais conhecido do grande público, mostra todo o seu gosto pela arte de representar nesta entrevista. Mas ambos não se dissociam de contar algumas coisas que acham que vão mal no meio artístico em Portugal.

Vamos começar com uma pergunta da praxe, para os dois. Gostava que me descrevessem as vossas personagens.

Ângelo Torres – O meu é o vigarista, o aldrabão, o “chico-esperto” e “fura-vidas”. É aquele que tem que resolver a vida dele custe o que custar, nem que para isso tenha que dar um golpe.
Marcantonio Del Carlo – O Bruno é um bronco (risos). Ele é um “mal-amanhado”, alguém que vai percorrendo atrás de coisas, tem aquelas paixões, o boxe e a mota, mas é um bronco fundamentalista (risos). Porque acha que as mulheres dão azar, bebe leite, não bebe, não toma drogas, portanto acho que no fundo é um bronco fundamentalista.
AT – Essa é boa (risos).

Isso faz-me lembrar aquela personagem, o Begbie [interpretado por Robert Carlyle], do “Trainspotting”…

MDC – Também, mas noutro registo mais cómico, salvo as grandes proporções (risos).

Mas o teu personagem é sem dúvida uma das mais cómicas do filme. Aqueles tiques do “não me toques, pá”. Foi difícil criar um boneco que fizesse rir desta maneira? Porque o riso é sempre difícil de projectar no espectador…

MDC – Por exemplo, há bocado fiquei curioso… eu não sabia disto, mas eles faziam apostas para ver no dia seguinte quais eram os tiques que eu trazia… não fazia a mínima ideia. E uma das coisas que eu pensei é que havia muitas das coisas que nós inventamos, na altura, que o Luis [Galvão Teles] iria depois cortar na edição, senão o filme seria gigantesco. Curiosamente, tudo o que inventámos, ou o essencial, estava lá. E isso agradaou-me imenso. Depois o inventar as coisas… eu não sou nada… sou muito instintivo… não sou nada aquela pessoa que se prepara muito, que está constantemente a pensar na personagem. Eu vou por aquilo que… é a tal história… nós somos vampiros. Se um dia tiver de fazer um jornalista, se calhar vou te buscar a ti, percebes? Se tiver de fazer de Ângelo vou buscar o Ângelo. Isto porque diariamente estou a “vampirizar”. A única coisa de grande preparação que eu me lembro que fizémos foi uma sessão à tarde, fabulosa, no guarda-roupa da Maria Gozanga [Guarda-Roupa em filmes como “A Passagem da Noite”, “Inferno” ou “Zona J”], que é minha amiga, onde eu experimentei tudo o que havia, por proposta minha. É que dois ou três dias antes eu tinha ido a um ginásio de boxe que a produção me arranjou para eu ir ver como é que eles faziam boxe, e vi lá dois ou três tipos muito engraçados. Aí pensei que aquilo podia ser muito giro. Eles usavem imensos colares brancos, e brincos e coisas assim. Foi a ideia da tatuagem (risos)… experimentei cinquenta mil! Portanto, lembro-me que essa sessão foi muito engraçada, e apercebi-me de uma coisa. Eu não penso nas coisas, vou fazendo, não sou nada de racionalizar… fui me apercebendo que tinha mais graça o seu lado histriónico, aquilo que as pessoas viam de profundamente espampanante. Mas depois o gajo até é um tipo contido. Teria graça que todos os disparates que o gajo fizesse, ele acreditasse mesmo naquilo. Portanto, ele acreditava que não devia beber, por desporto, e que as mulheres dão azar, percebes? E depois foi muito divertido.

E trabalhar com o Danton, como é que foi?

AT – Normal…

No relacionamento com os actores brasileiros, têm um método diferente de trabalhar?

AT – Lá isso têm. Sempre uma disciplina e “limpeza”. Por exemplo, o Marco [Marcantonio] disse que é muito instintivo, que é algo que eu não posso dizer do Danton. Também porque quando eu o conheci ele já vinha preparado. Não sei qual é o método dele. Mas no Danton o que é impressionante é que ele pode repetir dez vezes um “take”, e nas dez vezes, sempre com uma progressão porque vais melhorando as coisas, ele faz-te exactamente o mesmo. Portanto o Danton não dá muito trabalho aos directores de fotografia.
MDC – Eu sou o terror dos realizadores (risos). Cada “take” faço tudo diferente.
AT – Eu também sou um bocado assim.

Mas isso significa o quê? Vocês acham que eles são mais profissionais?

AT – Não. Não tem nada a ver com profissionalismo…
MDC – São formas de estar…

Ou seja, nós somos mais “desenrascados”? Será isso?

AT – Não. Em Portugal há actores também do estilo do Danton. São precisos. Estudam tão bem a personagem e têm isto tão bem mecanizado e preparado, que repetem dez “takes” da mesma forma. Mas atenção… com a repetição algumas coisas podem se modificar, mas no cômputo geral está igual. E o Danton é assim.

Formas uma dupla perfeita com ele. Mas acabam por se zangar por causa de uma mulher, a Lia (Ana Cristina Oliveira)…

AT – Historicamente sempre foi assim, não é? (risos)
MDC – É por isso que as mulheres dão azar! (risos)

Mas afinal, ela é uma mulher fatal ou não?

AT – Todas as mulheres são fatais.
MDC – Até a nossa mãe!
AT – Exacto. Que é a mais fatal. E a partir dela vamos à procura de uma sósia, uma repetição.

Ângelo, li um artigo sobre ti em que afirmavas haver “poucos papéis para negros em Portugal”. Mas neste momento és protagonista neste “Tudo isto é Fado”, e ainda há pouco tempo voltaste a sê-lo no filme “Preto e Branco”. Manténs esta posição?

AT – Mantenho. Não existe só um Ângelo Torres. Há uma mão cheia deles.

Mas neste momento estás a passar por uma fase excelente…

AT – Já passou essa fase. Vamos ver se não volto a participar em outro filme só daqui a cinco anos. Se um actor em Portugal for pensar em viver do cinema… coitado, vai morrer à fome ou dá mesmo um golpe. Ou se for pensar “eu vou viver do teatro”, aí vive mesmo em baixo da ponte.
MDC – Esta questão é pertinente. É que tens uma dramaturgia e um guionismo politicamente correcto em Portugal, sem consciência de o ter, ao contrário dos americanos ou dos ingleses, que têm a perfeita consciência do seu “political correct”. Ficou tudo escandalizado na América quando a outra [Janet Jackson] mostra o seio no Superbowl, quando os americanos são os maiores produtores de indústria pornográfica do mundo. E fica tudo escandalizado com o seio… Se tu tivesses uma dramaturgia e um guionismo correctos em Portugal, farias novelas e filmes ou peças de teatros com pretos, com ciganos, com gajos de leste, com brasileiros… porque é a realidade que tu tens. Tu vens aqui a este hotel [onde decorreu a entrevista], e está aqui um brasileiro. Ontem fui buscar a minha mulher ao aeroporto e todos os gajos dos cafés têm brasileiros a trabalhar. O que quero dizer é que, se realmente se escrevesse sobre o país… o problema do cinema em Portugal continua a ser este. O cinema em Portugal continua a escrever com referências de fora. E o segredo está em tu começares a escrever com as referências de dentro. Em Portugal tens histórias fantásticas, vivências fantásticas. E quando se vem para escrever para Portugal, a única coisa que se faz é escrever sobre autores como Fernando Pessoa, Bocage, Camões… percebes?

Mas este filme é um bom exemplo de uma excepção…

MDC – Claro! Claro que é uma excepção! Bem venham estas excepções! O problema é que fazes um filme destes sem pretensão nenhuma. Conta uma história, é fresco, e é uma comédia romântica. Ponto final! Destes filmes, em Espanha… nem é preciso ir a Hollywood!


Mudando de tema, o que acham da final Portugal-Brasil no mundial de futebol, que aparece no filme? Uma utopia?

MDC – Perfeitamente possível!
AT – Se os ingleses não tivessem roubado a selecção de 66 (risos), nós tínhamos ido à final com a Alemanha.
MDC – Há quinze anos atrás pensavas que em Portugal se faria a Expo 98 e o Euro 2004? Não! Então porque é que a selecção não pode ganhar?
AT – Quando é que se pensou que um jogador português, mesmo no tempo do Eusébio, fosse escolhido como o melhor jogador do mundo ? [alusão ao prémio da FIFA que Figo recebeu em 2002]
MDC – Isto faz parte de ser um país periférico e pequeno. A genialidade em Portugal… tens o Figo, porque é Portugal! Mas como Figos tens muitos! Mas tu só podes ter um Figo, porque só há lugar para um Figo! Se o Benfica ganhar esta noite [a entrevista foi feita na véspera do jogo Inter Milão – Benfica], não ganhou nada! Tem que jogar mais jogos. Se o Porto ganhou 2-0 contra o Lyon e agora ganhar em Lyon, ainda não ganhou! Mas já é um acontecimento enorme. No país pequeno que temos… é a tal história… tu vais a Guimarães, Fafe, ou a essas terras, e é muito engraçado porque vês não-sei-quantos Ferraris! Eu estive em Cuba, onde ele viveu [aponta para o Ângelo], estive em Havana, e fui aos bairros do partido, do Castro. Aquilo é espantoso para eles. Para mim é um bairro dormitório de Lisboa. Na dimensão de pequeno país, voltando à questão, se tu quisesses escrever histórias e começar a falar da realidade portuguesa, acabava-se o problema da falta de público no cinema português. E tens provas. O Leonel Vieira, que tanta porrada tem levado, já encheu salas. Eu participei num filme chamado “Adão e Eva”, que não é genial, não tinha pretensões a isso (aliás, eu não acredito na genialidade), foi um filme muito visto em Portugal, e as pessoas foram ao cinema e gostaram. Eu faço telenovelas e as pessoas vêem.

Gostaste do “Preto e Branco”?

MDC – Não vi o “Preto e Branco”.
AT – O que achaste do “Preto e Branco”?

Excelente. Achei muito engraçada a mistura entre ironia e a guerra colonial.

AT – É, por exemplo, uma história que só Portugal pode contar em todo o contexto europeu. Pretos e brancos, na história recente portuguesa, há assim aos pontapés. E nenhum país europeu fez guerra em África. A última guerra que houve na Europa foi a segunda guerra mundial. E o baú de Portugal está cheio de boas histórias. Quando vês uma ficção portuguesa, como disse o Marco e muito bem, são coisas que se podiam ter passado em Lisboa, como nos Estados Unidos. Só que a diferença é que lá eles fazem com muito mais dinheiro e é mais apelativo. Outra coisa que discuti com um amigo meu italiano chamado Sérgio, que veio fazer a publicidade da Sumol, é que depois de ver essa publicidade apetece-me nunca mais beber Sumol! (risos) Enquanto que vês a publicidade da Fanta, e apetece comprar. Mas o Sumol é muito melhor que a Fanta!

Para terminar, projectos presentes e futuros. É mesmo só daqui por cinco anos que vamos voltar a ver o Ângelo nos cinemas?

AT – Eu acredito que sim. Eu não sabia, mas o Marco afinal deve ser, de entre os actores em Portugal, o que mais filmes faz que não são exibidos. (risos)

Estamos a rir, mas não é motivo de riso…

AT – Não é mesmo. Quando vi o filme “Sinais de Fogo” [de Luis Filipe Rocha, 1995] pensei, “uau! Está aqui uma mão cheia de actores portugueses que vão dar a volta ao panorama nacional de cinema”. Pinta têm, que é muito importante. Eu não me importo de me ver em papéis pontuais, a mim ou outras pessoas. Só que isto é um produto, quer se queira quer não. É um produto cultural comercialmente apetecível. Mas dizia… fui ver esse filme, com jovens actores portugueses, com figura, e que quando aparecem no ecrã enchem-no. “Sinais de Fogo” é dos melhores filmes portugueses que já vi. Porque tinha história e bons actores, e além disso revelou um certo número de actores jovens que pensaram que a partir daquele momento iriam aparecer, mas acabaram por fazer muitos filmes, e nem sequer apareceram em salas, o que é uma pena. Poderia ter criado a corrente de pessoas que iriam atrás desses actores e hoje teríamos referências, como eu pude ver, de pessoas que pensariam “quero ser actor como o Marcantonio” ou “quero ser actor como o Diogo Infante”, porque há muitos putos que crescem assim, com essas referências. Agora… eu digo cinco anos [para regressar ao cinema], porque tive um ano atípico em Portugal. De Agosto de 2001 a Outubro de 2002, só fiz cinema.

O Marcantonio está neste momento a fazer teatro…

AT – Sim, mas eu também acabei por voltar para o teatro, que é o meu meio.
MDC – Temos um problema que é com o advento da televisão. Há dias atrás aconteceu-me uma coisa muito curiosa. Eu estava com o carrinho das compras, porque eu nunca me considerei uma estrela, não mudei uma vírgula na minha vida por ser figura pública… nem sei o que é isso. E uma pessoa veio me perguntar, “então? Nunca mais o vi”, a que eu respondi, “você não vê porque não me quer ver”. Lá está. Vai estrear um filme comigo, estou com o meu espectáculo, tenho a casa cheia. O que se criou e que aconteceu com a televisão é esta coisa de que o actor é o que faz televisão. Eu sou de um tempo em que só se via RTP1, que era a única que fazia ficção. Curiosamente, a pessoa que lançou um canal de televisão em Portugal, que é neste momento o de maior audiência (a TVI) que é o José Eduardo Moniz, quando foi director de programas da RTP acabou com as novelas. E era a única novela que se fazia. Havia uma pequena elite de pessoas que faziam a novela, e os actores onde estavam? No teatro. Era o que havia, e alguns filmes que se iam fazendo. Portanto, criou-se um pouco este conceito de que o actor é o de televisão. Mas isto é extraordinário, porque depois os actores continuam a trabalhar e a ter o seu papel. Por exemplo, estávamos aqui a falar do papel dele [do Ângelo] como protagonista em outro filme, mas ele acabou de fazer o protagonista numa peça na Cornucópia. Eu fui lá e sei que a sala estava sempre cheia. É claro que aquilo não tem milhões de pessoas como a televisão ou milhares como terá o cinema, mas está sempre cheio.

Já agora, não queres fazer publicidade à tua peça?

MDC – É “A Passagem das Horas”, do Álvaro de Campos. Estamos em digressão, felizmente cheíssimos (risos).
AT – Eu estou a ensaiar um monólogo, porque eu sempre quis fazer um por uma simples razão… eu quero que no cartaz, em vez de aparecer o meu nome, apareça “entre outros”, e eu sou o único actor em palco. Porque em Portugal há o péssimo hábito de, quando se vai fazer uma crítica a uma peça de teatro, faz-se o texto falando de duas ou três pessoas de televisão, e o resto é tudo “entre outros”. Eu vou ser o único em palco e vou ser o “entre outros” (risos).

Nuno Centeio