Quinta-feira, 28 Março

Grande entrevista a Miguel Gonçalves Mendes, o responsável por «José e Pilar» (Parte II)

(Ver a Parte 1 da entrevista) 

 
 
Viu a versão de seis horas? Não lhe custou também na fase de montagem?

Sim, custou, porque a fase final da pós-produção foi toda feita no Brasil e durante a montagem fazíamos uma espécie de “test screenings” para ele ver como é que estava a montagem e então o Fernando, nós só preocupados em cortar mais um minuto ou mais uma meia hora e ele dizia “não, isto não se pode cortar, isto não se pode cortar”. Portanto, ele próprio tinha uma relação com o material  de gostar e depois desaparecer.
 
 
Como é que foi a relação câmara / sujeito? Nestas coisas, já se sabe que sempre que aparece um câmara algo muda.

É óbvio que muda. Tem a ver com a duração, os tais quatro anos que há pouco falávamos, uma das coisas que também projectei e fiz é a ideia que estou a falar com duas pessoas mediáticas, que têm uma relação muito diária, exposta com os “media” e no fundo como é que tu quebras essa barreira e esse gelo que eles devem ter como defesa aos próprios meios de comunicação? Então calculei que, já por isso, seria necessário tempo. Primeiro acho que foram enganados, acharam que o filme ia demorar para aí uma semana ou duas semanas, nunca imaginaram que durasse tanto tempo e depois porque, na fase inicial, comecei apenas por filmar eventos públicos, então não estava como um intruso, nem sanguessuga, um abutre… e depois porque acho que eles começaram a perceber que o que me interessava a mim não era o que interessava aos outros jornalistas: aos outros jornalistas interessava o “soundbyte” que ele falava sobre o comunismo ou sobre Deus e a mim interessava-me mais ele a dormir com o Garcia Marques. E então, nessas viagens em que fui filmando esses eventos públicos, é óbvio que se foi criando uma relação entre nós, quando fui a Lanzarote já a porta de casa estava aberta, já essa relação existia.
 
Depois é óbvio que há técnicas: há lá uma reunião de trabalho, no filme a reunião tem uns três minutos e aquela reunião demorou quatro horas. É óbvio que depois há uma limpeza na montagem que tu usas em que eu decidi limpar qualquer interacção com a câmara, porque sempre tentei que o filme tivesse ou que fosse construído sobre este prisma de estrutura de narrativa clássica, que o espectador sentisse que está a ver uma história, com princípio, meio e fim, que é a história deste homem, que quer escrever um livro, que adoece, que acha que não vai conseguir escrever o livro, que acha que vai morrer e que consegue recuperar e que consegue acabá-lo. Queria que o espectador de alguma forma nunca sentisse que está a ver um documentário, por isso evitei qualquer interacção com a câmara. A única interacção que existe é no carro no Rio de Janeiro e quis por uma questão muito simples: a uma dada altura comecei a achar que o filme tinha um lado moralista da minha parte em relação aos “media” e aos jornalistas, mas fiz exactamente o mesmo que eles, andei quatro anos em cima dele, portanto, a cena existe exactamente por isso. A Pilar sabia que eu queria filmar o José contra Copacabana de fato e gravata e existe por isso, para mostrar que eu também estive lá…
Dá-me ideia que ele não gosta de fotografias, mas não passa que seja uma visão moralista que fez o filme, passa que é uma opinião dele.

Coloco aquilo não é numa forma de defesa, é para dizer uma coisa, depois as pessoas tirarão as interpretações que entenderem, isso já não se pode controlar, agora a ideia era mostrar que eu fiz exactamente o mesmo que os outros, mas espero que não tenha sido de maneira tão abusiva como algumas coisas a que assisti.
Porque é que são apresentadas algumas posições da Pilar que poderão hostilizar o público português? A conversa da união Ibérica, o acordo ortográfico, são coisas que normalmente polarizam muito as pessoas, não havia o risco de afastar as pessoas?

Esse risco é sempre possível. Por exemplo, podes dizer que não gostas dos livros do Saramago, eu amo. O homem foi prémio Nobel e as opiniões continuam a ser do tipo “esse homem devia estar no inferno”. A notícia que aparece do Saramago no jornal, lês os comentários e a forma como as pessoas destilam ódio é inacreditável. Por exemplo, ainda no outro dia alguém dizia que o filme devia ser queimado, que devia existir Inquisição para queimar este filme. A loucura existe no mundo e tu não podes fazer nada contra ela, agora, em relação à Pilar, a Pilar é uma pessoa veemente e isso acho que também é o charme dela, primeiro porque é espanhola, toda a sua postura é obviamente diferente da portuguesa, nós somos muito mais serenos, e depois é uma pessoa muito frontal, aquela coisa que o próprio José diz: “ver, ouvir e não calar”, mas ela diz, são coisas assumidas. Cabia-me a mim assumir isso ou não assumir isso. Optei que tudo isso fosse assumido, sendo que a maioria das coisas que a Pilar diz, concordo com elas, portanto não tinha qualquer pudor em usá-lo. A única coisa em que discordo totalmente dos dois é que são iberistas. Sou totalmente anti-iberista, sou visceralmente anti-iberista, mas ao contrário da postura das pessoas em relação a ele ou a ela, acho que as pessoas são adultas, sabem que não existem verdades universais e que tu podes ser brilhante e no entanto discordar em não sei quantos assuntos.
Mostrar estas opiniões polémicas não poderá reforçar a ideia de que ela é alguém que é muito opinativa, quase que parece que é ela que se impõe ao Saramago e o arrasta pelo mundo, mas, com toda essa força com que é pintada e toda essa polémica não se corre o risco de reforçar a ideia de que ela o roubou?

Acho que é uma das interpretações, mas tu não podes controlar as opiniões das pessoas. Por exemplo, posso dizer que, em relação à Pilar, há opiniões que se dividem: há pessoas que acham absolutamente extraordinário esta vida que ela deu ao José e há outras que acham exactamente o oposto. Garanto-te que ela era uma injecção de adrenalina na vida do José. Claro que depois podes falar que era ela que o arrastava, mas se não fosse ela ou era o editor ou era uma pessoa qualquer e era exactamente a mesma coisa, e ele agradecia que alguém cuidasse desse lado em que ele próprio não queria mexer. Agora, há uma coisa no filme que ele diz, que eu acho super bonito em relação à vida e em relação a tudo: o elefante caga, o elefante mija e isso são coisas concretas, agora que as pessoas lidem mal com as coisas como elas são é problema delas. É muito fácil haver interpretações politicamente correctas ou primárias sobre as coisas. O Saramago quando viu o filme deu-me o elogio que eu mais gostei de ter ouvido. Durante as filmagens várias vezes teve dúvidas daquilo que eu estava a fazer, não percebia qual era o interesse das coisas que eu estava a filmar, mas depois de ter visto o filme achava que o filme era muito mais do que só sobre eles os dois, era um filme sobre as relações e sobre a vida. Isso deixou-me super contente porque uma das coisas que eu queria mesmo que o filme passasse, queria que, de alguma forma, todos nós nos espelhássemos no filme, isto é, que os jornalistas se vissem no filme, que os fãs se vissem no filme, que nós portugueses nos víssemos no filme, que o próprio José e a própria Pilar se vissem no filme. O filme levanta várias questões e não te apresenta respostas, porque não há respostas para a vida, tu não tens manuais, não sabes como é que a coisa é. Há uma coisa que a Pilar, por acaso não diz isso no filme, mas que ela dizia e eu acho super bonita, que é: tu não podes deixar de agir, tu não te podes demitir de agir, e depois só ao olhar para trás é que percebes se fizeste mal ou se fizeste bem, mas tens de continuar porque é por isso que estamos cá, não há outra oportunidade.

Outra transformação que aconteceu com o filme, com as histórias polémicas, inicialmente há seis anos, o filme chamava-se como piadola, e era mesmo só como piadola, chamava-se “União Ibérica”. De repente, mais tarde, o José faz aquelas declarações polémicas, com as quais eu discordo, e diz-me assim “bem ó Miguel agora vão achar que nós estamos aqui a fazer um “complot”…”, e eu respondi-lhe “pois José, a partir do momento em que fez essas declarações, o nome cai” e foi por isso que o nome mudou para “José e Pilar”, que eu acho uma coisa bem melhor, por várias razões, primeiro porque se vê perfeitamente aquilo que é, e é como eram conhecidos por quem os conhece e esse era também o objectivo do filme, que houvesse uma relação de intimidade com o espectador, e depois porque não queria ver os cartazes a dizerem “União Ibérica”, “União Ibérica”…
Aparentemente o novo filme será o “Evangelho segundo Jesus Cristo”

Será se existir dinheiro…
 
 
 
Porquê este filme?

Por várias razões, primeiro porque é o livro mais cinematográfico do José, no sentido em que há livros do José que são maravilhosos e dos quais eu até gosto mais do que do Evangelho, mas a nível de adaptação cinematográfica o Evangelho é o livro perfeito, porque aquilo parece quase fruto de uma mesa de montagem, a forma como as cenas estão encadeadas e a forma como vão mudando. Há um lado muito engraçado de que eu gosto, que tem a ver com a experiência humana, com a História e a Humanidade e os desígnios de Deus, e que permite aquela transformação de Jesus Cristo, que ele não quer, mas em relação à qual ele não pode fazer nada porque não consegue e isso é uma coisa que a mim me interessa muito. Por outro lado, mais uma vez se entra naquela questão dos raciocínios primários que se fazem sobre o livro, não percebo como é que um livro que é para mim um dos mais belos escritos em língua portuguesa pode ter sido alvo do espalhafato primário que foi e é quase como que fazer uma espécie de justiça ao livro.
Na altura quando saiu o livro estava o PSD no governo e é possível que esteja quando sair o filme, não haverá problemas em fazer este filme?

Bom, espero que não seja, espero que o país seja diferente. Para já foi patético em 93, e terá sido o motivo pelo qual ele se foi embora de Portugal, porque houve um entendimento que o livro fosse retirado de uma candidatura a um prémio europeu porque ofendia a moral dos cristãos portugueses. Estamos em democracia, supunha que fossemos mais adultos, mas pelos vistos não éramos, esperemos que agora sejamos.
É um partido que se define como conservador.

Sim, mas podes ter um partido conservador que defenda a liberdade de opinião e que não há categorias de gosto. Espero que isto não volte a acontecer, mas é uma experiência e não sei o que é que aí vem.
Apoia a medida que se deve olhar para o número de espectadores quando se atribui subsídios no cinema?
Acho que isso é uma questão, mais uma vez, muito específica e que infelizmente é colocada de uma forma demagógica e populista. Existe o cinema bom e existe o cinema mau em toda a parte, mas não podes medir filmes que, pela sua particularidade, não poderiam ser feitos se não tivessem o apoio do estado e que permitem desenvolver a Arte ou que permitem dar um passo em frente e que fazem enorme sucesso junto de um público especializado e junto de festivais. E é uma das coisas que é perfeitamente válida, existe mercado para tudo, para fazer filmes. Tu podes fazer um ensaio sobre o azul que aquilo tem um mercado específico, agora, se os valores devem ou não variar isso já é outra questão. O que eu acho é que o cinema deve ser apoiado em toda a sua diversidade, mesmo que tenhas que escalonar essa diversidade e tenhas que fazer uma distribuição de apoios em função dessa escala. 

Efectivamente também não podes recusar que o número de espectadores de bilheteira seja um peso importante, porque o é obviamente. Porque o povo português também se quer ver reconhecido no cinema que o representa, isso também é uma aspiração legítima. O que a mim me incomoda nesta discussão eterna entre o cinema de autor e o cinema comercial, que é para mim uma discussão bastante patética, é que as coisas não se colocam nestes termos, todos eles são válidos, existe mercado mesmo para os distintos tipos de cinema, tens é de regulamentar de forma a que consigas preservar e apoiar diferentes formas de cinema. Quando se fala na indústria também é patético porque em Portugal não consegues ter indústria, basta fazer contas muito simples: o maior sucesso de bilheteira em Portugal é “O Crime do Padre Amaro” que fez 300 mil espectadores. Se fizeres as contas por bilhete, não paga o filme e foi o maior sucesso de bilheteira de todos! Dificilmente se consegue bater “O Crime do Padre Amaro”, portanto qual indústria? No dia em que conseguires exportar para o Brasil aí talvez consigas ir mais longe, mas com o mercado português não consegues, o mercado português não te paga um filme português. Portanto a questão é se o estado português quer cultura ou não. Digo isto como piada, e não é ofensiva, mas daqui por 200 anos ninguém se vai lembrar de quem é o Cristiano Ronaldo e esta crise que nós vivemos agora vai ser uma questão de rodapé, mas o Camões, o Fernando Pessoa, o Saramago, esses vão continuar a existir e para mim o que determina a História de um povo é a cultura e a ciência, e isso são coisas a fundo perdido: se em quarenta anos tiveres uma obra-prima ou uma descoberta científica, isso já é maravilhoso, são dessas coisas que se faz um país ou a História de um país, não das outras.

 
 
Entrevista conduzida por João Miranda

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