Segunda-feira, 6 Maio

O cinema como tecnologia social – por João Miranda

A velha ideia de que uma imagem vale mais de mil palavras é uma falácia que se tem revelado nociva na cultura visual ocidental e no cinema em específico. Se se pode argumentar que há anos de tentativas de desconstrução da imagem nas artes plásticas e no próprio cinema, há também, como o disse Susan Sontag em relação à fotografia, um atribuição de autenticidade à imagem, um mecanismo automático que se prende com as limitações da percepção e com a não-interpretação (por oposição à linguagem oral e escrita) da visão. Essa confusão da verdade com a imagem  tem-se revelado nas últimas décadas com a estetização e a mercantilização do fotojornalismo, tendo o público dos leilões deste aumentado em mais de 200% nos últimos dez anos, e, ainda que se tivesse revelado antes, acentuou-se com o registar mecânico da imagem.
 
Desde cedo o cinema jogou com esta dualidade do sente-se verdadeiro / sabe-se falso, assentando no conceito de “suspension of disbelief”, uma negação da desconfiança na esperança do encanto ou da iluminação, um momento de alienação voluntária, mas um estilo de cinema manteve-se na linha do registo e da veracidade das imagens apresentadas: o documentário. É com Dziga Vertov e o seu “Kino Pravda” (Cinema Verdade) que se atinge  um dos picos onde a coincidência da imagem com a realidade é declarada, apesar de se saber da sua manipulação pela montagem e pela música e de se procurar um didactismo ideológico. Nos últimos anos o documentário tem sofrido muitas alterações, com pioneiros como Errol Morris e Frederick Wiseman, e tem, pouco a pouco, entrado no circuito comercial, abandonando o contexto mais académico e sendo exibido nas salas. Nesta nova onda de documentários é assumida a incerteza do meio e do discurso e/ou a sua parcialidade, com Errol Morris a focar-se no primeiro e Michael Moore e Morgan Spurlock no segundo.
 
É neste desenvolver do documentário que aparece nas salas o documentário “Autobiografia de Nicolae Ceausescu”, construído unicamente por imagens de propaganda e filmes privados do ditador. Sem qualquer narração ou entrevista, o filme acaba por cair na falácia de que as imagens bastam. Na realidade, essa posição é insustentável, pressupondo um conhecimento histórico que os próprios espectadores trazem consigo para o filme, provocando entre eles o diálogo constante (e neste caso essencial) que acaba por se sobrepôr ao ruído que foi seleccionado para acompanhar grande parte do material, originalmente arquivado sem som, por uma questão de custos. Sem esse contexto, o que se pretende que seja uma visão da falta de escrúpulos do ditador num jogo de vólei, pode ser interpretado como um momento de cansaço num jogo informal, ou a negação do reconhecimento da autoridade do tribunal sumário em que o julgam no final da vida, uma defesa natural de um acusado; pode ficar-se com a ideia de que um ditador do qual só vemos as obras e reconhecimento internacional possa ser percebido como alguém injustiçado pela História. É um filme marcante como cinema, mas é muito perigoso a nível de consciência Histórica.
 
A Vénus Negra  
 
No reverso da medalha, temos “Vénus Negra” de Abdellatif Kechiche, onde o discurso existe, mas é editado pelas imagens para servir uma mensagem. Aqui a obsessão visual é a de documentar a violência da opressão Colonial, quer a nível de estruturas sócio-económicas, quer a nível visual, sendo a protagonista sujeita à constante exibição, quer em espectáculos, quer científica. Para isso, uma história que se revela ambígua e complexa e sobre a qual já foram escritos livros, é simplificada e cortada de modo a que qualquer humanidade ou agência da protagonista lhe seja negada, fazendo-lhe realmente o que se acusa os outros de terem feito antes. Mais uma vez, a exploração visual como registo ou mesmo substituto da realidade é um dos principais guias e, mais uma vez, se espera que seja o público que traga o contexto, neste caso primariamente emocional. Se a “Autobiografia de Ceausescu” não se revela imediatamente como um tema classe média, este “Vénus Negra” não o consegue esconder, registando-se na possível culpa que a educação Histórica pode provocar em alguns elementos desta classe.
 
 
Ainda que os estudos existentes mostrem que o cinema é consumido por todas as classes (sendo que a dicotomia se coloca essencialmente entre os que consomem produtos culturais e os que não o fazem, segundo Tak Wing Chan e John H. Goldthorpe), o meio em si é profundamente classe média: desde as suas origens na cultura visual ocidental, aos temas explorados. Se tomarmos em conta Ranciére e a sua definição da Estética como política e Griselda Pollock com os seus ensaios sobre a replicação estética da relação entre géneros, podemos extrapolar que a evolução das artes visuais no Ocidente reflecte as relações entre classes e/ou grupos organizadores vistas do ponto de vista de quem as cria e consome, a classe média. É esta a classe que, com um deleite não antes visto, se dedicou à tarefa de desconstruir os meios e as narrativas existentes, tendo declarado mortas as ideologias e as grandes narrativas há já algum tempo. Há quem defenda, como por exemplo Žižek, que esse movimento é pura ideologia (não-declarada) e que só serve o mercado e os propósitos económicos de poucos. 
 
Para além disso, tem também sido documentada uma redução no vocabulário utilizado na linguagem corrente, perdendo-se complexidade e riqueza no pouco discurso que ainda há. Se esta onda de filmes com uma vertente essencialmente visual não é nova, é novo a sua falta de contexto. Será que é resultante da morte das narrativas e do empobrecimento do discurso oral ou algo que assenta sobre elas e pressiona um ponto já sensível? O problema é que o visual não se argumenta, entra no nosso sistema e é catalogado e marcado emocionalmente, mas não é interpretado: se conseguimos dar conta da mentira quando a lemos, só damos conta da mentira visual a posteriori, depois de já fazer parte dos nossos mapas, de termos ficado com coisas que não queríamos, que se vão acumulando porque é impossível pôr tudo em causa. Estaremos nós a ficar como Keanu Reeves no “Matrix”, sem boca, destinados a que um qualquer agente sombrio disponha de nós como quer sem que possamos defender-nos?
Nota: Ainda há dias, Žižek discursou sobre este sobre este tema aos manifestantes do Occupy Wall Street. O discurso completo pode ser lido aqui.
 
João Miiranda 

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