A luta de Alexandre, François e Emmanuel é de uma injustiça tremenda. Os três homens, apoiados pelas suas famílias e dando voz a várias vítimas, lutam pela condenação criminal e excomunhão do padre Bernard Preynat – o homem que os molestou sexualmente quando eram ainda crianças. O padre nunca negou os crimes que cometeu, confessa inclusive a doença de que sofre, mas nem por isso a justiça toma o devido curso. É que a lei impede que os casos de abuso sexual sejam julgados após 20 anos, ficando prescritos, e a Igreja prefere silenciar a situação do que danificar a sua reputação.

Dadas as circunstâncias, estes homens lutam por meios próprios contra a lei e a Igreja Católica, esse gigante secular que permanece um pilar da cultura ocidental e um centro de poder. Talvez tão trágico quanto o trauma que os atormenta desde a infância é o facto de esse trauma provir do lugar que para eles significava refúgio, benevolência, esperança. Não é só a integridade física e emocional dos três que foi danificada por Breynat; foi-lhes também abalada a fé.

É da fenda psicológica e espiritual que lhes foi aberta que provém a cólera que agora lhes dá força para quebrarem estigmas e tabus, enfrentarem memórias dolorosas e condenarem o silêncio que rodeou as suas histórias. E se todos incriminam a inatividade e cumplicidade da Igreja, nem todos a vêm como a verdadeira vilã. A complexidade emocional dos protagonistas não é comprometida por qualquer atitude vingadora aniquiladora, mas caracteriza-se antes por uma indignação contida, uma coragem laudável e contradições perfeitamente humanas. É esse espírito de fervor não teatral, de justiça não justiceira, de masculinidade não bárbara, que faz de Grâce à Dieu um retrato tão credível e, consequentemente, arrebatador.

Tal como o argumento é marcado por uma inquietação que não impede a representação realista dos detalhes e das subtilezas destas personagens, também a realização dá um passo atrás e abstém-se de devaneios estilísticos que chamem à atenção qualquer artificialismo. Nesse sentido, François Ozon, o realizador francês cuja carreira é feita de experiências formais e floreados artísticos, foca-se totalmente nos esplêndidos atores que dão vida a estes casos reais, apoiando-se nos seus retratos poderosíssimos em vez de construir mecanismos estilísticos que distraiam do conteúdo.

A estrutura fluída com que atravessamos as vidas dos três homens é exemplo claro disso, evitando-se uma montagem mais desconexa – e daí mais antinatural e por isso ostensível. A estratégia de Ozon é, portanto, divergente da que normalmente o cineasta se serve, recorrendo aqui a um registo mais orgânico, que em muito deve ao cinema americano e a filmes como Spotlight. Juntamente com uma evidente habilidade para a composição e o enquadramento das imagens, a execução de Grâce à Dieu é lindíssima.

O filme consegue, por tudo isto, ter uma carga emocional excecional enquanto descortina os horrores e expõe as máculas que hoje mancham a relação da Igreja Católica com os seus fiéis. É uma das crises mais relevantes do século, mesmo que por vezes não seja a mais mediatizada. Por essa razão, e por ter arrecadado o Leão de Prata no Festival de Berlim, Grâce à Dieu consagra-se como um dos documentos mais significativos desta histórica querela, cujas ramificações vão muito além de questões teológicas.

Pontuação Geral
Guilherme F. Alcobia
Jorge Pereira
Hugo Gomes
grace-a-dieu-gracas-a-deus-por-guilherme-f-alcobiaGrâce à Dieu consagra-se como um dos documentos mais significativos desta histórica querela, cujas ramificações vão muito além de questões teológicas.