Sexta-feira, 29 Março

«Woman at War» (Mulher em Guerra) por Jorge Pereira

Halldóra Geirharðsdóttir entrega uma prestação memorável neste Mulher em Guerra, um dos melhores filmes do ano

 

Se queres que as pessoas te ouçam, não podes mais dar-lhes um toque no ombro. Precisas atingi-las com uma marreta e depois perceberás que recebes a atenção estrita da parte delas“. Esta frase (traduzida livremente) de Se7en, vinda da boca do serial-killer John Doe (Kevin Spacey), poderia perfeitamente surgir no manifesto do novo Joker ou no da nossa Halla (Halldóra Geirharðsdóttir), a mulher em guerra que dá título a esta obra do islandês Benedikt Erlingsson.

Mascarada de uma vida longe de qualquer ato de vandalismo, onde até dá aulas num coro, Halla nos seus tempos livres vagueia pelas paisagens islandesas a destruir postes de alta tensão que servem a indústria pesada do país. A um certo momento, quando um helicóptero procura incessantemente a nossa “terrorista” (ou ativista), o piloto diz que se deviam livrar dos carneiros presentes na paisagem pois dificultam a caça à intrusa. Estranho o mundo em que um poste de alta tensão no meio de uma paisagem natural é uma inevitabilidade e um elemento integrado na mesma, mas um carneiro é visto como um obstáculo, um elemento estranho que se deve eliminar.

E esse espírito negro, essas mentiras que se tornaram verdades, essa perda da noção do certo ou errado que é um dos pontos mais elevados desta soberba (mas politicamente e socialmente problemática) obra de Erlingsson, que bebendo conceitos estéticos e narrativos de muito do cinema de Aki Kaurismaki e Roy Andersson, entrega um trabalho de urgência “com cabeça, tronco e membros”, embora todos eles apontem para heroicização ligeira para a complexidade dos atos em jogo. Não satisfeito apenas com a questão ecológica, o cineasta acrescenta um toque crítico à forma banalizada como o poder manipula a imprensa e a imagem que as pessoas têm de certos indivíduos e ideias “radicais”. E este tema é particularmente interessante nos dias de hoje em que os governos e a sociedade civil estão extremamente preocupados com as fake news, esquecendo-se que essa cultura nasceu exatamente nas estruturas governamentais (propaganda), em conluio ou manipulando a comunicação social (pensem em Hitler ou mais recentemente em Bush e a suposta existência de armas de destruição maciça no Iraque).

Mas deixando de lado as pseudo-filosofias e um discurso político sombrio, e voltando ao filme, brilhante na sua mise-en-scène, um dos elementos obrigatórios a analisar é o papel absolutamente essencial da banda-sonora, presente tanto em espírito como fisicamente em cada sequência, e funcionando como a verdadeira delatora do estado mental de Halla em cada um dos momentos que vive. Cada quadro fílmico tem um selo de vivacidade que encaixa na perfeição com a expressividade de Halldóra Geirharðsdóttir (num duplo papel), contribuíndo para que a personagem principal, que Miguel Sousa Tavares provavelmente chamaria de “urbano-depressiva”, seja uma figura aparentemente esclarecida, mas complexa e ambígua.

Isso mesmo fica demonstrado quando o seu ativismo é abalado pela iminente chegada de uma filha adoptiva que há muito tinha requerido. É aqui que os dois mundos colidem, entre a responsabilidade de agir contra governos que falam em urgência climática, mas que na realidade não fazem absolutamente para a resolver, e o de educar uma criança neste mesmo mundo hipócrita e em modo autodestrutivo. E neste debate, o egocentrismo ou altruísmo dos atos (atentados/ativismo e adoção) está também na equação, transformando as ações da protagonista em algo não muito distinto das que o mascarado de V de Vingança fazia – agindo por conta própria, como a voz da razão, até despertar uma multidão regida pelo medo e insegurança. A diferença é que aqui esse medo e a insegurança são laborais (perda de emprego, falta de crescimento económico), isto num país que saiu de uma das maiores crises da sua história.

Mas será que para o desenvolvimento económico (e não crescimento económico) é mesmo necessário descaracterizar a paisagem e destruir uma identidade histórica e natural? O capitalismo diz que sim, Halla certamente discorda…

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Jorge Pereira

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