“Baixa os olhos nestas almas que se despedem dos seus corpos mortais”

Um avião vindo de Cabo Verde chega ao Aeroporto Humberto Delgado (Lisboa). Uma pista de aterragem fantasmagórica, vazia de mortais. O aeroporto não é mais identificável, é uma peça dentro de uma Lisboa engolida pela escuridão, pelas trevas que povoam o coração dos Homens. A porta abre, de lá um vulto aguarda pelo acesso ao solo português: uma mulher, entregue ao negro do luto (e não é por menos). Ela chegou à terra com 25 anos de atraso. Agora é tarde, a sua vinda é um encontro com a morte e com as forças que a própria desconhece. À sua espera, mulheres aguardam para dar-lhe umas nefastas palavras de boas-vindas: “A casa dele não é a tua casa. Volta para a tua terra.“. Um aviso que a nossa protagonista recém-chegada, Vitalina Varela, ouvirá constantemente: “Volta para a tua terra“, “não há nada aqui para ti“.

Talvez esses mesmos alertas, recambiamentos para Cabo Verde que nunca deveria ter deixado, sejam a verdade santa num cemitério extenso que se chama Lisboa. Varela tem o propósito de reencontrar o seu marido, só que este não é mais um ser vivente, mas uma recordação, e não daquelas recordadas com agrado. A nossa protagonista instala-se na casa do falecido, habitação essa em plena fase de desmoronamento. Ao seu redor, uma comunidade restringida à sua subsistência, aos cavernícolos depósitos a que chamam lar. Até mesmo a igreja, gerida por uma cara conhecida de Varela e do público que acompanha estas jornadas – Ventura –, é um espaço de comunhão com os mortos e não com os vivos. “Os espíritos falam português“, refere Ventura, decifrando a Varela a chave para o contacto com os do além, onde até mesmo os fantasmas se venderam à língua colonial. A mulher, fustigada pela sombria mágoa e erguida com o senso de perdão, comete o esforço de criar um laço com estas entidades. Os espíritos coexistem com o comum dos mortais. Não existe nada de sobrenatural nisto, é somente o “estado das coisas”.

Não choro por nenhum cobarde“, declara Varela, que mais tarde terá resposta do “homem de Deus” – “Bem-amado é aquele que chora” – para depois ceder ao peso de uma vida em vão, constituída somente pela morte sem pré-aviso. Se bem que o filme de Pedro Costa não é mais do que um diálogo entre dois seres, enfaixados num rigor que só o realizador parece ter adquirido nos seus anos de carreira, Vitalina Varela [título do filme] é um degrau numa escadaria que vai dar, sabe-se lá onde. Pedro Costa é o autor em Portugal por direito (e no resto do Mundo também), mas dos poucos que se pavoneia com uma constante inovação na sua arte, ao invés de muitos que se restringem ao seu “cinema confortável”.

Vivemos em tempos, um espirito rebelde que tentava configurar “a maior invenção do Homem” em O Sangue (1989), a obra inaugural de um cineasta em busca de uma voz, mas com a perfeita noção do seu estado, do querer deixar uma marca, de preferência profunda no panorama português. Partiu para a Ilha do Fogo, Cabo Verde, com a promessa de exorcizar fantasmas de um passado colonialista em A Casa de Lava (1994). Veio de lá com uma nova noção de cinema, uma busca pelo exotismo degradante das sombras portuguesas (os marginalizados). Assim, avançou sorrateiramente por um dito cinema etnográfico e calcificado com emergência social em Ossos (curiosamente, Catherine Deneuve revelou que era um dos filmes prediletos), porém, Costa sentiu-se defraudado por este seu retrato aos habitantes do (agora extinto) Bairro das Fontainhas e é com o filme seguinte que o reconhecimento global é atingido.

Ao filmar a demolição de um biótopo em O Quarto da Vanda (2000), o realizador prescreve uma encruzilhada de novas histórias e rumos. O caminho decidido encontrou paralelo com a inicial intenção de A Casa da Lava, a coexistência de fantasmas com os peregrinos vivos, e assim nasceu Juventude em Marcha (2006), onde fomos introduzidos a Ventura e por sua vez um regresso ao “cinema de estúdio” com Cavalo Dinheiro (2014). Como o leitor já deve ter percebido, o cinema de Pedro Costa (não contando com os exercícios paralelos como Onde Jaz o Teu Sorriso? ou Ne Change Rien) é contínuo. Nenhum filme é uma ilha e todos compõem um continente à parte.

Vitalina Varela prolonga esses passos de Costa e deixa em aberto novas abordagens, histórias, pessoas e locais, e o final é digno disso; um comité para um dito universo partilhado, por sua vez autoral, observacional e rígido na forma. Esta obra culmina os trilhos que caminhamos juntos, onde a fotografia (excecional) de Leonardo Simões encharca os planos, conspirando para os metamorfosear a quadros vivos, algo velasqueanos tendo em conta a sua saliência para com o nosso olhar em fuga; a profundidade, a mise-en-scène que se enquadra num só corpo. Possivelmente, um dos melhores trabalhos de realização do cinema português que há memória (e quiçá, além fronteiras).

Pedro Costa conseguiu o seu filme mais calculado e como tal o mais belo e apaixonado. A partir daqui é só aguardar impacientemente pelas novas oferendas que o realizador tem para nos entregar.

Atenciosamente,