Sábado, 20 Abril

«The Dead Don’t Die» (Os Mortos Não Morrem) por Rodrigo Fonseca

Jim Jarmusch regressou ao Festival de Cannes com um filme de zombies

Zombies são signos de consumo: Iggy Pop, um dos mortos-vivos de Jim Jarmusch em The dead don’t die, exibido esta terça-feira, 14 de maio, na abertura do 72º Festival de Cannes, só sabe dizer uma palavra, “café”, sintetizando aquele que deseja deglutir. Alguns pedem bebidas com álcool, outros brinquedos, alguns pedem gelados. A lógica é a de um género nascido em 1968 e bem estabelecido. Quando Zack Snyder dirigiu o esbaforido Dawn of the dead, um dos grandes thrillers dos anos 2000, ele deu uma entrevista dizendo que o chame que há nas narrativas de mortos-vivos é o de não haver Bem ou Mal, no maniqueísmo heroico mais clássico: há presas e caçadores sem culpa. Bicho contra bicho. Uma lógica que o realizador de Vencidos pela lei (1986), Jarmusch entre o desbunde beatnik e a reação cáustica dos “angry man”, entendeu bem. O problema é que a prosódia pós-moderna dele não cabe no açougue digno de pinball que o filão zombie é.

Terror nato, The dead don’t die tem a sua montagem assinada pelo paulista Affonso Gonçalves, que põe nos trilhos o esforço de Jarmusch em homenagear uma linhagem de que é fã. Há posters de John Carpenter na parede de um dos locais. Há gente a vestirca camisetas de Nosferatu. Há imolações à altura das que George A. Romero (1940-2017), realizador de A noite dos mortos-vivos (1968), o pai dessa estética, fazia. Só não tem dinamismo. Nem tem estofo (vida) nos personagens. Tem uma América que mais parece a Baltimore de John Waters como um Hairspray do Além.

A sua projeção em Cannes teve risos, teve empolgação com as farpas políticas contra Trump, teve claque organizada em prol do gaiato Bill Murray, que assume o papel de um veterano policia às voltas com mortos-vivos. Mas faltou o principal: profundidade nos tipos vividos por uma trupe de bons intérpretes, a começar por Rosie Perez no papel de uma jornalista de TV. A crítica internacional saiu da sessão com um nó na cabeça sem entender como um cineasta famoso por extrair poesia da observação dos aspectos mais mundanos do dia a dia conseguiu esvaziar tanto seu olhar.

Gonçalves encontra para a edição de The dead don’t die um ritmo viável para tamanha falta de conexão com a agilidade e a fúria dos filmes de zombies, homenageados de maneira explícita por Jarmusch. Na trama que inaugurou o cardápio cannoise em 2019, Adam Driver, Chloë Sevigny e Bill Murray integram a força policial de uma cidadezinha do interior, Centerville, onde corpos em decomposição se levantam das tumbas após uma súbita mudança na rotação da Terra. Além de mudar a ordem do dia e da noite, o cataclismo faz com que a Morte seja posta em xeque: zombies cheios de fome por carne humana começam a caçar. Apesar de ter um elenco cheio de estrelas para narrar essa caçada, incluindo os músicos Iggy Pop e Tom Waits, o cineasta dá às personagens a profundidade de um pires. Há ainda a aposta na metalinguagem, com Murray e Driver falando com consciência de que estão num filme, o que prejudica ainda mais a longa metragem. A quebra da quarta parede resulta em desnecessário pedantismo.


Rodrigo Fonseca

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