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«A Minha Avó Trelotótó» por Guilherme F. Alcobia

Quanto mais pessoal e particular for uma história, mais ela adquire uma aura de universalidade. Pode parecer paradoxal, mas esta lógica torna-se tanto mais clara neste filme de Catarina Ruivo – a cineasta portuguesa por detrás de obras como o comovente André Valente (2004) –, que com esta produção imortaliza no grande ecrã um dos membros mais especiais da sua família.

A avó, em todas as suas peculiaridades, histórias de vida, filosofias e relacionamentos, permeia cada segundo deste trabalho, mesmo quando ele devaneia pelas vidas daqueles que com ela contactavam. É o caso da sua empregada doméstica, do farmacêutico que a acompanhava, dos amigos que havia feito em África, continente em que viveu grandes trechos da vida. A realizadora compreende que pela ausência se vinca tanto mais uma presença; por isso, quando espreitamos as vidas preenchidas, animadas, cansativas destas “personagens secundárias”, vemos na rotina, na tradição e na curiosidade o mesmo humanismo e amor à vida que sempre caracteriza a avó.

Todos os pormenores destas vidas são tão claramente autênticos e genuínos, particularidades de vidas que se entrecruzam e se dispersam, que é impossível não vermos nelas fragmentos das nossas próprias experiências. Entre a ficcional e o documental, o filme constrói, como uma lupa que sobre palavras faz ver uma frase, não só o percurso como a personalidade desta senhora. No conhecermos o seu caráter, reencontramos nele emoções, opiniões e vivências que nos nossos círculos, familiares e outros, já entrevimos. Não se trata de tentar generalizar um retrato como este, nem repetir aquela ideia-feita de que uma vida retrata toda uma época; trata-se antes de afirmar a plena humanidade de que este filme exubera.

Porque,como afirma a própria cineasta, A Minha Avó Trelotótó «não é um documentário sobre a minha avó mas um filme com a minha avó». Através de fotografias retiradas de álbuns de família e de imagens videográficas, é nos dada a conhecer esta “personagem” – mas é essencialmente pela voz da atriz Rita Durão, que lê as suas cartas, que vamos descobrindo o seu íntimo. E largas partes do filme nem se centram diretamente nela: pelo outro se desvenda o sujeito. Ao alargar assim o seu campo de visão, o filme enrobustece-se e atesta a sua maturidade como retrato de uma vida completa.

Não apenas devido a isso ele é lindíssimo. A câmara de Ruivo olha pelos cantos certos, faz jogos de sombra e luz impressionantes, é inventiva no modo como apresenta imagens documentais e as justapõe com imagens originais. A sua inspiração parece formar um híbrido entre a imaginação fantástica de Agnès Varda (principalmente no seu Les Plages d’Agnès), a seriedade poética de Chantal Akerman e a beleza documental de Jonas Mekas. Montado também pela realizadora, o filme delonga-se por momentos em salas de significativa importância, em praias e pinhais, em rostos memoráveis, num ritmo que nunca se perde mesmo com uma extensão de quase três horas. Mas o que são três horas para uma obra que quer fazer ressuscitar toda uma vida e uma pessoa?

Guilherme F. Alcobia