Sexta-feira, 19 Abril

«The Beach Bum: A Vida Numa Boa» por Jorge Pereira

Numa visita ao programa de David Letterman para promover Kids de Larry Clarke, que escreveu o filme quando tinha 19 anos, Harmony Korine afirmava que se tinha metido no cinema e filmara Gummo porque estava insatisfeito com a forma das narrativas que a indústria lhe apresentava.

Quase três décadas depois, uma dezena de videoclipes e uma mão cheia de longas-metragens fortemente cunhadas com a sua marca de irreverência, o realizador – agora com 46 anos – apresenta Beach Bum, um filme que se conta não apenas pela sua história (sobre nada), mas pela fotografia, banda sonora e prestação de um conjunto rico e vasto de personagens que podiam ter saído de qualquer filme de Wes Anderson, ou serem os novos americanos de Altman, mas com aquele toque “trash”, marginal e libertário que hoje em dia quase só Korine consegue apresentar (Sean Baker é outro exemplo).

Se o foco aqui é a história de Moondog (Matthew McConaughey delirante), uma versão evoluída e ainda mais alucinada e poética de Alien (James Franco) de Spring Breakers, é na interação deste com o espaço e personagens que reside o maior encanto deste vibrante Beach Bum. Nesse aspeto, do marinheiro Martin Lawrence, dono de um papagaio cocainómano, que crê que tubarões são golfinhos, até ao brilhante Jonas Hill, a soberba Isla Fisher, ou uma dúzia de não profissionais, a riqueza dos “cromos” desta coleção de sketchs que este filme representa mostra que uma manta de retalhos pode ser transgressiva sem o tentar ser pelo choque.

O “nosso herói”, Moondog, vagueia de cerveja e charro na mão, com roupagem espalhafatosa que encaixa numa Miami ultraestilizada e com dupla vida (diurna e noturna), num objeto de 95 minutos que se define logo pelos primeiros 5. O seu espírito livre, longe do rancor, mas não isento de sofrimento, é do mais hedonista e anarquista imaginável, longe da amarras e coações, sejam elas familiares ou sociais, numa busca constante pela felicidade sem tempo para ressentimentos.

Isso sublinha-se em grande parte pela sua relação com a filha e mulher, que aqui vai além de quase tudo o que poderíamos considerar razoável (para não usar o termo “normal”). Moondog e o seu grupo vivem a vida “numa boa”, facilmente caracterizável como imatura, a de um nómada espiritual que recusa o fixar-se em regras impostas pela sociedade. É curioso também o trabalho da figurinista Heidi Bivens, que vestiu a personagem de McConaughey e fez o melhor que podia para que o vencedor do Oscar, um “Hunk” em Hollywood, parecesse sempre muito pouco atraente.

Outra das formas como Korine conta a sua história é transformando o espaço (Miami) também ele numa personagem. Nessa construção, direção artistica e cinematografia são fulcrais, tendo Korine chamado novamente o diretor de fotografia Benoit Debie, com quem trabalhara em Spring Breakers, pedindo-lhe para ele ir ainda mais longe no trabalho estético. Debie cumpriu, aqui usando mais cenas diurnas, cunhadas com filtros aplicados nas lentes da pelicula em 35mm para fugir da pureza ensolarada da cidade, dando assim um toque quase místico e permanentemente em transe, que se estende e acentua no uso e aproveitamento das luzes artificiais espampanantes (verdes, laranjas, rosas choque frequentes) nas cenas noturnas, sem esquecer – e talvez o melhor conseguido – os luscos fuscos que anunciam um sentido permanente de transcendência do local e de quem observamos.

Para além disso, Korine dá espaço aos atores para expandirem eles mesmo os seus papéis, uma liberdade que exige uma câmara reativa que não se limita a seguir atores robotizados comandados por um guião. Por isso mesmo, Debie ilumina permanentemente 360º em torno dos seus protagonistas, permitindo os seus devaneios, reagindo assim a câmara a eles.

Já na banda sonora, Korine aplica uma playlist geracional efusivamente ligada aos retratados, pois se nos filmes anteriores – como Spring Breakers – se aplicavam tons mais jovens e contemporâneos (pense-se na eletrónica de Skrillex ou o pop de Britney), aqui as escolhas são mais próximas dos anos 70 e 80, com temas dos The Cure, Stephen Bishop e Van Morrison a coabitarem com a banda-sonora original de John Debney..

E através disto, Korine conta também a história de elementos de uma geração que se recusam a render, a sua.


Jorge Pereira

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