Quarta-feira, 24 Abril

«Mug» (A Face) por André Gonçalves

 

O que fazer quando algo tão simples como uma mudança facial afeta não só a identidade pessoal como os costumes de uma pequena vila religiosa, prestes a inaugurar a maior estátua do “Cristo Rei” do mundo? 

É esta a proposta ousada que o polaco Mug nos propõe. Acompanhando Jacek, um construtor metaleiro (fã dos Metallica), que sofre um acidente de trabalho que lhe desfigura a cara, a realizadora Małgorzata Szumowska escolhe também de uma forma “metaleira” mostrar esta transformação, com contínuos planos de costas deste protagonista infeliz (que se projetaram inclusive no potente poster, quase que a convidar), e distorções sobre a distorção. 

Há no entanto algo aqui a separar esta tragédia de outras demais – uma contenção dramática que evita o óbvio, começando pela decisão crítica de não nos mostrar o acidente que serve de motor para o segundo ato. Não que a obra não seja miserabilista, mas é um miserabilismo acompanhado de um humor negro que ataca sempre que possível a hipocrisia da Igreja, que guarda uma das suas melhores piadas para a sua cena final, onde a posição de Cristo Redentor reflete também, de uma forma ambígua, tanto a posição da gente que o venera, como pode também significar que Cristo, ele próprio, nem quer olhar para os seus devotos com vergonha.

Szumowska explora assim, de uma forma bem insistente, a noção de ridículo de uma falsa humanidade e caridade perante o acidente. A mesma Igreja que não assumiu responsabilidades perante o acidente, aceita um peditório para ajudar a vida nova de Jacek, como se esta fosse a compensação possível. Pelo meio, há espaço para o espectador assistir a conversas intimistas num confessionário que revelam basicamente o vício intrínseco, a humanidade falida destas personagens circundantes. Estas verdades inconvenientes contrastam por sua vez com a fixação com os sorrisos ou a falta deles quando os comportamentos são expostos para uma câmara.   

Nota-se uma vontade tão gritante em expôr esta hipocrisia que as personagens, incluindo o próprio protagonista, nos parecem também desenhadas apenas para conduzir o ataque satírico até ao “gag” final. Ainda assim, estamos perante uma das películas mais intrigantes da temporada.  

André Gonçalves

Notícias