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«Destroyer» (Ajuste de Contas) por André Gonçalves

Pode uma transformação física minar todo o julgamento que possamos ter sobre um filme? 

Em boa verdade, culpe-se o marketing, que colocou a transformação de Nicole Kidman no centro da sua promoção, prometendo-nos uma performance para os livros de história. Aliás, não demorou muito tempo para haver uma contra-reação, a gozar quer com a maquilhagem que a atriz pôs na cara para a envelhecer e lhe fazer parecer que esteve 16 anos a consumir a sua própria culpa ao pequeno-almoço em vez dos cereais açucarados que o comum humano toma, quer até com a peruca que usa nos flashbacks para o ponto da sua vida onde tudo dá para o torto (Kidman tem usado tantas perucas que se tornou um alvo fácil). 

marketing não mentiu, atenção. Mas omitiu que por detrás de uma grande performance, há sim um filme sempre interessante.

Comecemos pela performance, injustamente subestimada – ou subvista? – nesta temporada de prémios (talvez apenas comparável, na maneira como usa o deglam a favor de uma mudança completa a nível de linguagem corporal e voz, a Charlize Theron em Monster, e à sua própria performance em The Hours). A maquilhagem da atriz não impede esconder um dos rostos mais conhecidos de Hollywood, mas é também ela um instrumento essencial tanto à performance como à narrativa do próprio filme, sempre posicionando-nos em dois tempos, colocando-nos diretamente no transe da sua protagonista. Não é por acaso que o filme abre precisamente com um close up de meia cara de Kidman, onde os seus olhos azuis claramente viram tudo o que havia para ver, ou então imaginaram o cenário pior. Quando não estamos a olhar para ela, estamos a olhar o que vê, embora os olhos da câmara por vezes se coloquem fora do seu corpo, em modo observatório/águia face a planos mais panorâmicos ou, numa ocasião particular, como uma lesma colada ao carro que usa para executar o seu “ajuste de contas”. 

A pessoa destruidora do título aponta para a protagonista e ao seu circuito de autodestruição, que finalmente encontra um último gás para desatar a perseguir o outro “destruidor” ao qual o título também pode fazer alusão: mais do que um vilão clássico invencível, este é retratado como um mero peão igualmente humano – se menos aprofundado que a anti-heroína – no jogo de pilhagem. A maneira como este desenlace é resolvido faz lembrar precisamente o outro thriller superlativo do ano – Widows de Steve McQueen, também ele uma subversão de género e raça face ao que estávamos habituados a assistir na década de 70, de Siegel (o Dirty Harry de Clint Eastwood) a Friedkin (The French Connection).

Sim, há uma tensão soberbamente engendrada por Karyn Kusama a meio, com Erin a sabotar ela própria, não pela vontade de sair a ganhar, mas pela sua força da sua fisicalidade débil em modo “sobrevivência”, um assalto ao banco que culmina no que pode ser descrito numa versão sangrenta de uma luta de lama, e num dos vários momentos estranhamente tocantes da película, onde ambas as mulheres acabaram por ser vítimas do mesmo homem, em níveis diferentes. Mas olhe-se para o desenlace final a seco, preocupado em resolver em contra-relógio a situação, pelas feridas entretanto acumuladas, pelos parceiros de crime, ou pela culpabilização da própria, e o abrir da boca será mais pelo desenho da reviravolta final do que pela maneira gloriosa e “hollywoodesca” como este (não) é executado.    

Embora use as suas influências canónicas do noir e neo-noir como motivo de existência (o arquétipo do detetive sujo e deformado seja praticamente tão antigo como o género onde se insere), e abuse na redução dos frames por segundo numa imagem final (picuinhice pessoal), Destroyer merece tanto mais que um mero rótulo de policial rotineiro. 


André Gonçalves