Antes de avançar para este regresso de Clint Eastwood à sua díptica tarefa (direção e representação), queria-me deslocar a uma das teses de Slavoj Zizek, que também integrou o documentário The Pervert’s Guide to Ideology (Sophie Fiennes, 2012). Aí, o filosofo exemplifica a ideologia por detrás da franquia Starbucks. O que ele indica é que ao comprar café nestes balcões, estamos também a comprar a sua ideologia, isto porque estes produtos mais caros que os dos concorrentes vêm com a promessa de solidariedade. Por exemplo, uma percentagem desse valor reverte a uma causa (seja ela qual for, desde a alimentação de crianças africanas a salvar uma floresta tropical). Essa engenhosidade torna a que um ato de puro consumismo (da nossa parte) não ostente qualquer indicio de culpa, porque o consumidor é abrangido na ideologia de que na aquisição destes cafés está a contribuir para a ajuda de algo – abstraindo-se com isto do pensamento consumista no ato que pratica.

Voltando a The Mule (Correio da Droga), a história de um florista nonagenário, Earl Stone, que aceita trabalhar para um cartel de droga como transportador (aquilo que nos EUA é designado  de “mule”), é possivelmente uma derivação dessa tal teoria do branqueamento consumista, porque em certo caso, a obra de Clint Eastwood joga com a ambiguidade moral. Ou seja, o bem gerado por ilícito. Aqui o protagonista contribui para a comunidade em que se insere (seja por exemplo, a associação de veteranos), ou na rendição dos seus pecados passados (redimir o tempo perdido com a sua família), tudo isto com o dinheiro conquistado através destas transações ilegais. Earl tem o conhecimento dos seus atos e é nisso que o pensamento de Zizek encaixa na perfeição, só que longe das demandas de expansão capitalista, o que está em causa é a ética, a sua natureza e compostura.

The Mule entra nesse mundo em que a personagem principal cai no “goto” do espectador sem nunca ceder aos caminhos da martirologia pura, o final é um exemplo perfeito desse engodo, onde a culpa de todo este jogo de enfoques morais encontra a sua pátria (cedendo depois a um belíssimo travelling enquanto os créditos tomam posição no ecrã). Contudo, antes disso, não é só a droga que faz jus a essa teia de valores, alguns que até desafiam a intenção algo “Trumpista” que a América vive e das últimas glorificações aos “heróis” americanos de Eastwood. Earl convive com os seus traficantes, come, bebe e interage com estes de um jeito quase castiço, o que drena toda uma composição a um território de terceira-idade amistosa. E por momentos, até os antagonistas demonstram essa sensibilidade humanista, cedendo também às complexidades dos tons cinzentos.

Pois, é que Eastwood como “espião duplo” (atrás e à frente das câmaras) comporta-se como um cineasta diferente, pregando os bons valores da família ao mesmo tempo que procura uma redenção ao seu conservacionismo, quer ideológico, quer até cinematográfico (o realizador é um grandes herdeiros e sobreviventes do classicismo hollywoodiano). The Mule enviusa diretamente com os anteriores Gran Torino (a redenção), Absolute Power (a família), The Bridges of Madison County (a validade do romance) e até com o infame Space Cowboys (pós-envelhecimento), no sentido em que quebra o formalismo desse academismo genético tão próprio de Eastwood e procura uma sensibilidade doutrinal nos, e fora, dos seus planos.

Sim, é um cinema de velhos (no cinema protagonizado por Eastwood existe também uma autorreflexão que acompanha o estado do Mundo, neste caso a tecnologia e a sua dependência como perpetua menção), diversas vezes direcionado aos cinéfilos de outrora, mas na realidade encontramos aqui a jovialidade que muitos não possuem. Para isso, aproprio-me de uma das frases, saídas da terna Dianne Wiest, para representar a relação deste veterano com a cinefilia, e vice-versa:  “You are the love of my life, and the pain of my life.

Pontuação Geral
Hugo Gomes
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