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«Burning» (Em Chamas) por Fernando Vasquez

Há filmes que tardam em desabrochar. A linha ténue entre o prazer e o tédio são levados ao extremo e, sejamos honestos, o habitual é perderem-se neste truque aparentemente vazio. É um caminho sinuoso mas justificado. É que quando este exercício é perfeitamente calculado e executado torna qualquer obra num autêntico feito impar.

Neste contexto o sul-coreano Chang-Dong Lee oferece-nos uma masterclass sobre este jogo perigoso do ritmo cinematográfico na sua mais recente e brilhante obra, Burning, um dos títulos mais badalados na última edição do festival de Cannes, onde arrecadou os prémios da Critica e o da Melhor Direcção Artística. O caso não era para menos, já que Burning não se limita ao quimérico desafio do tempo e a sua técnica: esconde nesse método e resultado muitos outros tesouros de rara beleza.

O filme retrata um triângulo amoroso entre Shin, uma jovem e instável mulher à procura de um rumo, e dois homens, o discreto e perdido Lee e o confiantemente abastado Ben.

Shin e Lee reencontram-se acidentalmente após vários anos separados. Embora ele não se recorde da sua amiga de infância, a presença de Shin é contagiante e rapidamente inicia-se um jogo de sedução onde Lee, pouco dotado a este nível, torna-se numa presa fácil para o charme de Shin, que o convence a tomar conta do seu gato enquanto ela segue de viagem para África.

Quando Shin regressa, a relação que Lee ansiava permanece suspensa com a entrada em cena de Ben, um novo amigo de Shin que parece estar sempre por perto. O enredo assume novos contornos quando, após uma serie de encontros, Ben revela ter um hobby invulgar.

Talvez o golpe mais certeiro de Chang-Dong Lee está na forma como com apenas estas três personagens consegue criar um conflito subtil, multifacetado e por vezes inesperado, sempre temperado por um ritmo bizarro que vai revelando a verdadeira e múltipla natureza de cada personagem, passo a passo.

Ben e Lee dificilmente poderiam ser mais diferentes. O luxo opulento de Ben está presente em tudo: no seu carro, no seu apartamento, nas companhias que o rodeiam e no seu sorriso impenetrável. Em contrapartida Lee vive rodeado de pó e memórias perdidas, numa casa repleta de cascalho onde ressoam diariamente as transmissões da Radio oficial Norte-Coreana, saídas de uma torre estrategicamente colocada na fronteira. Enquanto que Ben invoca a imagem de uma Coreia dinâmica, moderna e refastelada em privilégios, Lee obriga-nos a contemplar em direcção a um passado encoberto, enublado, humilde e envergonhado. As duas personalidades são naturalmente opostas, reflectindo as duas condições sociais e os espaços onde cada um existe, duas Coreias opostas numa terra dividida por muito mais do que um parelelo.

No entanto é nos pontos comuns e na convergência entre estas personagens antagonistas que a chama que alimenta Burning atinge outras proporções. Ambos partilham muito mais do que uma vontade de conquista de Shin e do seu corpo. Existe uma raiva latente e contida que é transversal a Lee, Ben e a uma sociedade que é claramente incapaz de os concretizar na sua plenitude. Esta fúria explode de forma coerente entre os dois, unindo o vazio dentro de cada um e, de certa forma, oferecendo-lhes o que mais lhes faz falta: um objectivo de vida. Shin, que neste contexto, por momentos aparenta ser um mero adereço para justificar o conflito, revela-se subtilmente muito mais, estando longe de ser inocente neste triângulo de três personagens demasiadamente humanas e imperfeitas, onde a presa se confunde repetidamente com o predador, e vice-versa.

No meio deste embate lento e silencioso, quase sempre executado pela calada, num ambiente hipnótico e sonolento, Chang-Dong Lee solta vários golpes de mestre, com várias cenas que rapidamente se tornarão iconicas (existe mesmo uma dança inesperada que nos obriga a recordar Carvão Negro, Gelo Fino de Yi’Nan Diao) não fosse este filme já uma obra de culto apesar de ainda só estar a dar os primeiros passos.

Seguramente nunca será uma obra consensual, mas é curioso como o elemento que torna Burning num filme extremamente exigente e extenuante, é o mesmo que o eleva à categoria de obra-prima inebriante. Não é por acaso que se trata de um dos filmes mais referenciados nas listas de melhores filmes de 2018, quer em publicações de renome quer noutras menos rigorosas. Burning é uma obra que lenta e sorrateiramente se entranha na alma e deixa todos os resistentes na audiência com uma marca, um som e um odor duradouro, destinados a perdurar por vários dias após o primeiro visionamento. Que mais se pode pedir a um filme?