Terça-feira, 19 Março

«Rasga Coração» por Rodrigo Fonseca

Nesta hora de retrospetivas e balanços do ano, em que o cinema brasileiro (agonizando na luta por público) passa em revista o que viveu de melhor em 2018 (incluindo joias como O Processo, Arábia, O Grande Circo Místico, O Doutrinador), uma produção gaúcha, baseada em um marco da dramaturgia brasileira, tomou de assalto o coração da crítica de todo o país.

Vinda do Rio Grande do Sul, mas ambientada em Copacabana, Rasga Coração surpreendeu formadores de opiniões e espectadores com sua poética melancolia política. É algo na linha de C’eravamo tanto amati (Tão amigos que nós éramos, 1974), de Ettore Scola, realizador com quem o cineasta gaúcho Jorge Furtado aprendeu um caminho cinematográfico: o das “comédias tristes”. Não há muito lugar para o riso na história (e na História) que Furtado leva agora ao circuito. Mas tem Scola de Ettore nela: o senso de que o sólido desmanchou no ar da “mais-valia” faz tempo. Um tempo com cheiro de chumbo. 

Em cartaz no Rio de Janeiro e nas demais metrópoles brasileiras, o filme ganhou resenhas elogiosas de toda a imprensa do seu país, o que vem refletindo na adesão do público a nova longa-metragem de Furtado. Há quase 30 anos, ele levou à Europa uma curta-metragem que fez História no formato: Ilha das Flores (1989). Agora, depois de uma leva de incursões em enredos ficcionais nas raias do humor e da dor, como O Homem Que Copiava (2003) e Saneamento Básico (2007), ele dirige-se para as feridas morais da sua geração revendo o derradeiro texto do dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha (1936-1979). A sua peça foi batizada em referência a uma canção de Anacleto de Medeiros e Catulo da Paixão Cearense. Nela, Vianinha traduziu as desilusões políticas do Brasil dos anos 1970.

Filmada no fim do ano passado, a transposição do espetáculo para o cinema traz Marco Ricca (astro do culto Aos Teus Olhos) no papel de Manguari Pistolão, um ex-militante que se vê defasado das suas crenças éticas e afetivas ao questionar as escolhas de seu filho (Chay Suede, impecável no papel do rebelde vegetariano Luca). Drica Moraes, Luisa Arraes e George Sauma completam o elenco.

Encontramos aí um dos mais dolorosos desabafos geracionais do nosso cinema, com gosto de Bianchi (Romance) e de Ugo Giorgetti (O Príncipe), mas com o léxico furtadiano nas idas e vindas no tempo, da montagem. Esta visita ao texto de Vianinha se impõe como (bom) cinema pela luz realista da camara de Glauco Firpo. E há uma potência trágica em total afinação com as angústias do Contemporâneo no Lorde Bundinha de George Sauma – numa atuação que nos distancia do passado e atribui atualidade onde poderia reinar a melancolia. Mas a apoteose cabe a Marco Ricca, que nos dá uma atuação vivíssima, doída e reflexiva ao escavar múltiplas camadas morais em Manguari Pistolão, uma dos maiores personagens da Arte Brasileira.

Sob a batuta de Jorge Furtado, Ricca junta Custódio e Manguari em um corpo só, numa dialética entre o sonho e o dever, expressa numa atuação digna de estudo, pela sua contenção, pela atenção lúcida a qualquer esquematismo e pela poesia. E um par de frases, “Pai, posso te dar um beijo?” e “Sem rancor”, há de ecoar pelo nosso imaginário cinéfilo por anos.

Rodrigo Fonseca

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