Terça-feira, 19 Março

«Leave No Trace» por André Gonçalves

Ao longo dos últimos anos, o cinema independente norte-americano decidiu narrar novas histórias de disfunção familiar, não obrigatoriamente nascidas em solo burguês, ou do subúrbio, mas também longe de se renderem a retratos de pobreza. Educações especiais, sob cativeiro forçado (Room) ou então procurando o seu lugar longe da civilização (Captain Fantastic). 

Volvidos 8 anos sobre Winter’s Bone, Debra Granik trocou o branco da neve por um verde que preenche grande parte da película – até no uso de roupa, para melhor camuflagem. Mas não se iluda o espectador: este é filme desenhado nos mesmos traços, sobre uma América de interior com feridas por sarar mas sem querer necessariamente ser descoberta. Uma América sem voz no cinema dito comercial, e quando tem, é sempre pelos motivos mais aterrorizantes (são aqueles personagens de estações de serviço em filmes de terror, por exemplo). Granik volta assim a humanizar uma realidade que imaginamos ser-lhe minimamente próxima, ou pelo menos algo que a cative em desmistificar. 

Uma família de pai e filha habitam num parque, numa tenda, onde fazem a sua vida – ele, um ex-militar, sofrendo de stress pós-traumático; ela, uma jovem adolescente cuja única socialização é principalmente tida com o pai e, de vez em quando, com outros colegas dele na mesma situação, e uma ida ocasional à cidade – ela sim um lugar estranho e hostil, e não a floresta profunda que os pode esconder. Um dia, são encontrados por uma patrulha de rangers (guardas florestais). Ser sem-abrigo não é crime, mas habitar naquele parque é ilegal, o que conduz então à tentativa de integração destes quase “selvagens” a uma versão simplificada do sonho americano, onde a troco de um trabalho na quinta, têm um abrigo.

Assim, mesmo que o filme, a partir deste segundo ato, comece ele próprio andar à deriva em busca de um lugar, de um destino que não nos parece tão certo (reflexo puro das suas personagens), não deixa de conter uma resolução completamente lógica com as pistas que nos tinha oferecido – nomeadamente naquela cena particularmente magnífica dos testes psicológicos diferenciados entre pai e filha. 

Mais cerebral que os exemplos passados citados no primeiro parágrafo, e até menos bombástico que o seu filme anterior, que lançou em definitivo Jennifer Lawrence e John Hawkes para a fama, o olhar contemplativo de Granik acaba por fazer a diferença pela sua sobriedade e pelo que consegue retirar do par principal de atores – Ben Foster e Thomasin McKensie conseguem transmitir uma intimidade de longa data que acaba por ser decisiva para o espectador ultimamente se importar com o destino destas personagens.  

 
André Gonçalves

 

 

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