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«Ray & Liz» por André Gonçalves

This is the happy house — we’re happy here

In the happy house — oh it’s such fun

We’ve come to play in the happy house

And waste a day in the happy house

It never rains

Siouxsie and the Banshees – “Happy House”

Um homem, confinado a um quarto, rodeado de insetos, e a beber um líquido sem rótulo, e portanto não identificado, pese o tom escurecido como coca-cola (será um chá medicinal? álcool?), que lhe é trazido por outro homem, em garrafas. Uma estação de rádio toca, anunciando o espaço: Reino Unido. Há também uma fotografia – julgamos que será o que liga esta personagem ao que vem a seguir.

É assim que nos somos apresentados nos primeiros dez minutos de filme. O filme então encarrega-se de mostrar outros personagens, claramente pertencentes a um meio económico tão limitado como o quarto do homem que testemunhámos inicialmente, pese a decoração e acessórios serem claramente mais abundantes.

Birmingham, num tempo que só se revela com a televisão a preto e branco, e um gravador de cassete para a família que vamos observar de seguida. O Ray e Liz do título estão aqui, ela a beber um líquido identificado (aqui, sim, sabemos ser chá), um casal com um filho que se entretém a martelar peças de um brinquedo. Há outro filho aparentemente, mais o irmão sui generis de Ray, capaz de repetir frases e exagerar no seu sotaque, o que começa a irritar Liz. Há um William, que está ausente. De repente, passámos portanto para uma comédia potencialmente dramática de foco social, totalmente devedora de Mike Leigh, não haja dúvida. Liz vai comprar novos sapatos para Ray, deixando o cunhado sozinho a comer um cozinhado de porco com o filho mais novo (que continua a martelar no seu brinquedo) e os animais domesticados diversos que a casa alberga. William chega, com um visual punk – casaco de ganga “quitado”, capacete, tatuagens, uma atitude “Fuck God!”.

Apresentadas as personagens principais em praticamente dois sets, prosseguimos então com o olhar voyeurista a este realismo idealizado. A ler as notas de produção, percebemos o quão pessoal este olhar é. O realizador e fotógrafo Richard Billingham decidiu fazer uma autobiografia visual ao seu passado, e ao dos seus pais (Ray & Liz). Richard revela-se o filho mais velho, o que em termos absolutos o coloca nesta ação com um miúdo de 9-10 anos num momento inicial da narrativa.

É portanto um exercício que se revela claramente terapêutico, mas felizmente para o espectador, é uma terapia conjunta, capaz de exorcizar males comuns, como a maneira como sem querer vimos a nossa própria família a tratar-se quando éramos pequenos, colocando-nos cicatrizes impossíveis de reparar, e com uma realização capaz de tratar o espaço envolvente como uma personagem extra, também ela voyeurística como nós, sem grande opção. O tema de Siouxsie inicialmente citado toca, de forma tão irónica como triste, por adivinharmos o que vem aí.

Não é um visionamento fácil, o que se segue – a calma relativa anterior gera violência, já ameaçada anteriormente nas entrelinhas. Mas há momentos doces, e divertidos, no meio destas memórias, que ajudam o espectador a empatizar mais com elas – Billingham não quer, pese a sua contemplação atingir níveis por vezes excessivos, perder a nossa empatia a meia. O puzzle narrativo vai-se arrumando por si, com o passar do tempo (de filme e da autobiografia), revelando claramente um cineasta capaz ultimamente de se distinguir da referência mais básica que o espectador possa ter (Leigh), escolhendo a (sobre)contemplação do espaço ao argumento em si ou ao trabalho de improvisação na escolha do retrato social de uma família de classe operária. Queremos definitivamente saber o que faz depois de ter exorcizado aqui os seus demónios pessoais, num olhar por vezes cansativo, mas ultimamente merecedor de atenção.

André Gonçalves