A evidência de uma luta entre classes em Raiva remete-nos sobretudo para o dispositivo de Manuel da Fonseca e o seu romance Seara de Vento (publicado em 1958) em consciencializar um povo para os seus mais profundos desejos políticos.

Esta nova ficção de Sérgio Tréfaut, a segunda longa-metragem desta linguagem desde A Viagem a Portugal (2011), é um objeto curioso e subtilmente absorvido pela sua reconstituição histórica, quer a nível cénico ou até mesmo atmosférico (com graças à belíssima fotografia do veterano Acácio de Almeida). Nessa demanda pela adaptação, o realizador opta pela raiz da matéria-prima, o neorrealismo tão em voga na década de 50, quer na literatura, quer no teatro e até cinema (os falhanços de Manuel Guimarães, realizador que de maneira nenhuma parece não conseguir reavaliar-se). Como tal, Raiva é puramente simbólico e possivelmente dependente desse mesmo simbolismo, o que o configura como um ensaio de ideias, a “mensagem” que o próprio Tréfaut revelou não interessar como foco propagandístico ou didático.

É um filme de imagens (termo que neste momento o leitor troça o escriba devido ao óbvio da caracterização), porque são estas, despojadas da dramaturgia cinematográfica ou ditada pela mesma, que realçam todo uma veia narrativo, dentro e fora do filme. E salientando essa ausência de ênfase e epifania, Tréfaut mutila a sua criação, inutilizando-o para esse estado. Como o faz? Simples manobra, transfigura as leis académicas dos três atos narrativos, opções narrativas que vão contra ao tão chamado storytelling que uma vaga de realizadores e argumentistas nacionais tentam impor. Por outro, essa escolha decepa por completo qualquer emotividade que poderá surgir por parte do espectador, ao mesmo tempo que configura um fatalismo irreversível.

Em Raiva, há um espelho de uma sociedade que hoje entra em plena negação, um revisionismo histórico dos “feitos salazaristas”, ou da urgência pela preservação distorcida da luta entre classes para induzir-se numa batalha contra as instituições erguidas atualmente. Tréfaut comete essa declaração politica sem o uso do mais grave das leituras politizadas, cada um encontra a sua consciência da forma como pretender.

Mas dentro desse retrato que esboça um Alentejo a passos do esquecimento, Raiva instala-se ainda como uma celebração das mulheres e sobretudo das atrizes portuguesas (passamos pela geração que tão bem traduz todo o nossos legado cinematográfico; Isabel Ruth, Leonor Silveira, Rita Cabaço, Lia Gama e Catarina Wallenstein). O signo feminino presente como juízos, quer finais ou motivos para os trilhos conflituosos do nosso “herói”, Hugo Bentes, o cartaz de Alentejo, Alentejo (o identitário documentário de Tréfaut) para as ribaltas da ficção, incentivando a sombra de um tipo de ator preciso e sobretudo inexistente no nosso leque profissional.

Em Raiva há muito por onde olhar e refletir, uma peça discreta que vence por essa mesmo discrição. Mesmo não tendo a histeria de um ativismo a ser demarcado, este é sobretudo um filme necessário para as nossas consciências.