Fora das evidentes referências bíblicas, este Lázaro [personagem] é todo ele uma cápsula personificada de uma Itália perdida, à deriva de um biótopo longe da sua adaptabilidade. Para a atriz e realizadora Alice Rohrwacher, esta sua terceira longa-metragem é apenas um sufixo do seu discurso cinematográfico, o de exorcizar um país dividido, não por facões sociais, mas por tomos temporais – passado e presente – sem nunca olhar para o futuro com promissores olhos.

Trata-se de uma Itália congelada pelo tempo, onde o modernismo interpela com as reminiscências quase convertidas a folclore. Nesse aspeto, porventura, levando com sobriedade na moldagem da sua metáfora, Lazzaro Felice é, em linguagem simplista, um conto. Preservando a ingenuidade de fachada que esses termos dispõem com prazer, é um efeito-chave de questões sociais, politico-financeiras, instalados numa montra, obrigando o espectador a espreitar tamanho fascínio por entre os adereços ostentativos da exposição.

Os fluxos migratórios, essas crises em que todos parecem reservar opiniões, são transitados (ótimo termo para a temática) para territórios domésticos. Num país “faz-de-conta” – assim o espectador se aperceberá graças a uma eventual reviravolta sem as antecipações shyamalianas – os camponeses vivem restringidos a uma terra isolada, contornada por um rio; a fronteira vista pelos seus próprios olhos. Cada camponês nasce e vive com o conhecimento de que é património de uma Marquesa, uma “aristocrata fabulista” que vive nos confortos do seu decadente castelo. Esta imensa “farsa”, um engano que leva a uma involuntária ignorância (sem com isto inibi-los de gestos e atos voluntários) por parte deste coletivo, é só uma camada para este embuste, desta vez sob tons de próprio inocente engodo.

Assim, somos introduzidos a Lázaro (um estaticamente doce Adriano Tardiolo), o conhecido “tonto” da comunidade, quase um autómato devido à sua incapacidade emotiva e sobretudo intelectual. Mas como titulo sugere, Feliz como Lázaro, este consegue ser o ser mais satisfeito em todo este enredo. Mas essa sua felicidade fantasiada é só a mentira contada ao espectador para o negar da principal consciência fílmica de Rohrwacher, assim como a escancarada menção bíblica, porque na verdade o que evidenciamos é uma Itália vivida numa prolongada burla, uma mentira não tão doce e igualmente discriminatória e castradora.

A realizadora articula todas essas variações e perpetua um cinema em constante saudosismo para com o seu legado. Por entre o rocambolesco de um Ettore Scola ou do tradicionalismo espiritual de um Ermanno Olmi (contraindo também uma ruralidade digna de L’albero degli Zoccoli), há que encontrar aqui, até porque o principal ingrediente está na mentira e como esta é forjada e mantida, especiarias do próprio Fellini. Sim, existe em Lazzaro Felice todo um cocktail de referências e tiques que se mesclam dando origem a um objeto cuidado, mesmo que a sua aparência seja sobretudo intuitiva e “sujamente” desleixada, uma metáfora a ser lida em qualquer que seja dos lados a começar.

Infelizmente, está longe da caricatura suspensa de Le Meraviglie, mas está perto de aquecer o nosso coração cinéfilo e acima de tudo em acreditar numa cinematografia absolutamente grata aos seus mestres. Agora só esperamos que Itália veja o seu Cinema a seguir as pisadas de Lázaro, ou seja, a ressuscitar. Não apenas a voltar à vida, mas encarando-a com nova vida.

(texto originalmente escrito em 14 de maio de 2018)

Pontuação Geral
Hugo Gomes
lazzaro-felice-feliz-como-lazaro-por-hugo-gomesAlice Rohrwacher posiciona-se como um dos grandes nome atuais do cinema italiano