Sexta-feira, 29 Março

«I Feel Good» por Jorge Pereira

Desde Aaltra que a dupla Benoît Delépine e Gustave Kervern tem invadido os cinemas com personagens atípicas – muitas vezes erradamente consideradas de excêntricas ou meramente “anti-qualquercoisa” – nas franjas económicas da sociedade e este seu novo I Feel Good apresenta um Jean Dujardin em grande forma no papel de um homem mentalmente instável que quer ser rico a todo o custo com uma invenção, do estilo Cubo de Rubik, o Facebook ou as cirurgias plásticas low cost na Bulgária, como é aqui o caso. As suas leituras incluem livros sobre Bill Gates e coleciona heróis na sua caderneta pessoal de empreendedores, enquanto desmantela o seu carro e vende as peças na Ebay para pode injectar capital no seu futuro-possível-negócio que o enriquecerá.

O que sobressai no meio disto tudo é o absurdo da ideologia neoliberal, condensada na figura alucinante de Jacques (Dujardin, num dos seus melhores papéis em anos), aqui contrabalançado nos antípodas pela sua irmã, a magistral Yolande Moreau (na sua terceira colaboração com o duo), um dos pivôs da comunidade Emaús onde toda a ação se desenrola.

O resto é o que já conhecemos da dupla. A ficcionalização nos limites do absurdo – sem cair no caricatural – nunca se afasta de um realismo quase documental, bastando ver o rol de personagens secundárias e figurantes que acompanham o duo principal numa jornada muitas vezes hilariante (onde não falta humor negro e ácido), outras meramente tocante, mas sempre verdadeiramente humana e familiar. A escolha de locais para filmar, bem como o design dos espaços dão um tom fabulístico e utópico bastante terreno. Veja-se a cena em torno do monumento construído na Bulgária nos anos 80 para a glória do Comunismo, ou todas as casas e casinhas da comunidade.

E o contraponto ideológico, cultural e social exposto trespassa aqui também para uma realização que mistura frequentemente os planos fixos com outros “handheld” que se arrastam com as personagens, sobrepondo-se plongée e contra plongée, médios, gerais, de conjunto ou de primeiríssimo plano (um deles marcante, que corta a cara de Dujardin ao meio de forma bizarra), imagens saturadas com dessaturadas, com enorme contraste ou meramente esbatidas.

Nisto é assim entregue ao espectador uma obra aparentemente punk e anarca, na linhagem dos trabalhos anteriores da dupla, mas na verdade nunca deixamos de presenciar um enorme rigor entre a irreverência de Delépine e Kervern na sua verdadeira sensibilidade e amor pelas personagens e história. 


Jorge Pereira

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