Terça-feira, 19 Março

«Azougue Nazaré» por André Gonçalves

Se o espectador acredita que o cinema é, em primeiríssimo lugar, um meio para mostrar lugares nunca antes revelados, esta primeira obra, vencedora do prémio Bright Future (Futuro Promissor) no Festival de Roterdão deste ano, é uma boa sugestão. 

Tiago Melo, que já tinha colaborado com Kleber Mendonça Filho (Aquarius) e Gabriel Mascaro (Boi Neon) assina nesta primeira obra um olhar sobre uma luta de “cultos” por assim dizer: de um lado o evangelismo, do outro o maracatu – uma performance que data do tempo da escravidão no Brasil, que servia para coroar um rei e rainha, e que hoje em dia se funde com os festejos carnavalescos da região. Para o evangelismo, o maracatu é obra do demo; para os intérpretes, em muitos casos religiosos, a evangelização não sabe do que está a falar. Sobretudo quando um incidente questiona a literacia do pastor, que era até antigamente mestre do maracatu. 

Há assim um filme-mosaico, composto pelas personagens que se movimentam em Nazaré, um lugar povoado por gente pobre e humilde, mas cuja rádio faz questão de salientar o tempo bom que se vive. Tiago Melo cativa logo à cabeça nos seus primeiros minutos com o canto popular, que aparenta anunciar um musical delirante à vista (e cumpre o que o trailer já tinha mostrado), contando assim uma parte da sua história com os versos trocados de uma forma malandra e incrementalmente reveladora. É a melhor cena do filme, aquela em que o enredo e folklore conseguem andar de braço dado. Nos minutos seguintes, acompanharemos as vidas de um casal, cuja mulher começa a ter sonhos (desejos) de engravidar do pastor antagonista; o “corno” e o “encornado” disputando a mesma mulher; e uns crimes misteriosos que surgem no canavial – filmados de um modo que parece que sem querer se tropeçou num outro filme. O elenco é claramente composto por “amadores”, um efeito que acaba até por jogar a favor do filme e ao seu estilo naturalista e quase documental, por vezes. 

Rapidamente, a mostra de folklore ganha ao enredo, e até à sátira aqui bem omnipresente, e o filme torna-se um objeto tão curioso como ultimamente sem um objetivo narrativo concreto; ficamos com uma denúncia da hipocrisia (e iliteracia) de uma comunidade de um lado – via um gag que tem a sua piada, e por outro lado, o embelezamento da tradição do maracatu.

Pelos tempos em que vivemos, isto pode efetivamente bastar para muitos. Pessoalmente, não consigo não manifestar um travo de desilusão – sobretudo pela potencialidade que tinha em ser algo bem maior. Mas algo me diz que temos aqui o Grande Prémio para Longa-Metragem nesta edição do Queer Lisboa. 

 

André Gonçalves

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