Terça-feira, 19 Março

«Disobedience» por André Gonçalves

Segundo o Tora, Deus criou três tipos de entidades: Anjos, Bestas, e ao último dia, o Homem, nem Besta nem Anjo, dotado de liberdade para desobedecer. 

Sebastián Lelio, responsável por alguns dos estudos de personagens femininas mais marcantes dos últimos anos (Gloria, Uma Mulher Fantastica) decidiu também ele desobedecer um pouco a esse padrão, pelo menos temporariamente, e decidiu participar numa história a três, onde cada vértice do triângulo acaba também por si por representar um ponto do espectro na devoção à comunidade judaica onde cresceram. 

Acabando de saber que o seu pai, o rabi da comunidade, morreu (após proferir o discurso presente no primeiro parágrafo), Ronit (Rachel Weisz), a renegada desobediente, regressa a casa. Aí depara-se logo com o discípulo preferido do seu pai, Dovid (Alessandro Nivola), e posteriormente com Esti (Rachel McAdams). Ronit eventualmente percebeu que, de modo para ter liberdade para pensar por si, tinha que sair do espaço que a viu crescer. Esti acaba por ser no fundo a versão dela que não conseguiu sair de casa, e acabou por assentar com Dovid, como única escapatória/cura para os seus desejos de besta que acabaram por ser notados… um compromisso que a chegada de Ronit vem abalar. 

Perante este enredo inescapavelmente novelesco, Lelio convoca até um registo clássico, Sirkiano, de “filme de mulheres”, de melodrama puro. Este sempre foi um género bem discriminado, mesmo com o revisionismo por outros autores contemporâneos (Pedro Almodóvar, Todd Haynes, etc. ), porque a telenovela – i.e. o melodrama mais comercial – sempre soube também simplificá-lo. Aqui, não haja dúvidas: há cinema para dar e distribuir. 

Ora usando tracking shots para acompanhar estas personagens (ironicamente sem um rumo bem decidido), pondo-nos como testemunhas deste affair, ora aproximando então a câmara para nos revelar nuances, ou aquilo que é efetivamente importante para as personagens, Lelio vai formando uma tapeçaria complexa de emoções nas quais o trio Weisz, McAdams e Nivola são co-artesãos.  Sem os três atores, os múltiplos desenlaces e os falsos finais poderiam ser mais desorientantes do que já são. É graças à sua entrega que aceitamos esta oferta genuinamente humana de Lelio como uma obra de amor, que talvez não saiba bem como sair de cena, sim, mas até aí se mantém fiel às suas personagens. 

Que um filme tão cativante como este não consiga estreia comercial em sala é sem dúvida mais alarmante que qualquer imperfeição que possa possuir. 

 

André Gonçalves

 

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