Terça-feira, 19 Março

«Blue My Mind» por André Gonçalves

A calendarização de um festival, isto é, a ordem pela qual os seus filmes são mostrados às audiências, pode trazer, inconscientemente, crueldades para com as obras em questão. Apenas 24h depois de ter sido mostrado Girl, foi projetado este Blue My Mind, uma história também de uma rapariga a passar por um processo peculiar de transformação, que não consegue nem metade do efeito da obra de Lukas Dhont, e assim sairá daqui sem o hype que procuraria alcançar (poderemos até pensar se não teria sido melhor ter competido num festival sem esse filme como direta competição, como um Motelx…).

Aqui, a transformação adolescente envereda por terrenos mais… fantásticos. Digamos que se quis neste caso, de uma forma até bastante mais usual do que se quer dar a entender, personificar essa criatura estranha que é a puberdade. 

Mia tem 15 anos, prestes a fazer 16 e acaba de se mudar para uma nova escola, sendo a integração um passo fundamental para o seu bem-estar. É então que se junta a um gang onde as raparigas a convidam a ir às compras e a participar em atividades mais ou menos ilícitas, mais ou menos arriscadas – é aqui que entra o segmento Thirteen (de Catherine Hardwicke) do filme, embora sabendo moderar o moralismo que esse filme norte-americano trazia implícito.

Esta seria então mais outra história de descoberta típica, onde Mia eventualmente até se apaixona (platonicamente ou não) pela sua melhor amiga, há um conflito, resolução, e terminamos. Mas não. O que a realizadora Lisa Brühlmann pretendeu fazer foi colocar um nível extra de dificuldade a esta história: é que Mia, desde que lhe aparece o período, que começa a detectar mudanças atípicas num corpo humano, além de ganhar o hábito de ir ao aquário de casa e comer uns peixes para se alimentar… Entra então o segmento Splash em versão body horror (o twist desta receita particular, pegando nas palavras do meu colega a propósito de Girl).

E se no papel, este transgenderismo cinematográfico (o principal motivo para a presença num festival queer) abrisse logo o apetite para um belo banquete, no ecrã, vai-se perdendo quer urgência pelo terror da situação (há uma cena mais impressionante também com uma tesoura e uma parte do corpo, mas é uma impressão meio gratuita, sem qualquer sugestão), quer empatia por estas personagens, meros acessórios, dos pais à suposta melhor amiga. Safa-se alguma caracterização da protagonista, mas não é suficiente. Não há claramente a maturidade necessária para tratar de um dos géneros, quanto mais dois ou mais. Maturidade para sugerir em vez de mostrar – passará a iluminação da cinematografia e alguns acessórios em tons de azul como sugestão?

Ao invés de um ballet, temos assim um arrastar penoso da narrativa, para esta no fundo nos revelar ultimamente a velha resolução – voltamos para casa quando descobrimos o que nos distingue dos outros. Infelizmente para Brühlmann, este tipo de caldeiradas já não contam propriamente como “distinção”. 

 André Gonçalves

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