As paixões cercam os tempos negros descritos nesta “fábula” a preto-e-branco. Pawel Pawlikowski, o consagrado realizador de Ida, esse melancólico caminhar nas memórias bélicas e dos horrores em vão, vindos de um país vitima/agressor, uma fonte a ser extraída em Cold War. Afirmamos que permanece aqui uma espécie de legado, a ida e vinda de um filme que insere-se e confunde por entre as fatídicas recordações de tempos de amor e ódio, de um conflito visto por entre palas, porque o romance, esse amor platónico que poderia servir como salvação (assim ecoam canções de esperança), resulta num mártir, uma silenciosa perda da sua inocência vendida.

Esta Polónia não se fica pela reconstituição, é um país imaginário que se transforma por entre épocas, e se distancia dos seus protagonistas, porém, sob um falso efeito de segurança (até porque os demónios nunca abandonam as paixões a abater). Nesse mesma nação enfatizada por experimentos sociopolíticos, nasce uma improvável aliança, recolhida através de um ato propagandista de uma identidade em vias de extinção. Cold War começa com um dos desses experimentos, a música a servir mais que um consolo, a perpetuar a História enraizada por entre melodias.

Uma equipa contratada pelo Estado lança-se nessa coletânea de sons e vozes angelicais, uma inicial datação das tradições remotas, as réstias de um país “desaparecido”, para se comprometer numa união de esforços na balada de uma só ideia. Esse socialismo imposto que servirá como a aresta picotada desse país que vos falo, e, mais, a expressão antagónica que ameaça o romance prescrito nesta experiência. Assim, nasce esse contexto romântico-dramático que seguiremos ano após ano. A distância, a aproximação, o encontro, a trégua e o choque. O mundo não os quer harmoniosos, por outras evidências, o mundo não os quer juntos.

Entendemos os toques shakespearianos, aliás a tragédia acompanha o percurso sem discrição. Pawlikowski apresenta-nos um amor “impossível” (nada de novo!) mas é na sua inserção que encontramos uma memória. Como a invocada em Ida, em Cold War somos remetidos à Guerra nunca vista, porque as atenções estão metaforizadas no bélico dos sentidos. O realizador consegue centrar o classicismo da sua formação e instalá-la nesta conjugação de elementos. Há amor, não através dos elos evidentes das personagens, mas por estas personagens. Pawlikowski deixa claro esse sentimento, até aos últimos minutos, em que desvia o olhar de destinos funestos até à chegada dos créditos finais.

Se Ida era considerado um filme frívolo, Cold War vai além da sua designação; é a extração do calor no gélido panorama. Apaixonamo-nos por estes atores (Joanna Kulig, Tomasz Kot), amamos esta dupla, o simbolismo friccionado nesta relação, a química que nos aquece em frios planos.

Há muito tempo que não se via um romance platónico desta dimensão no grande ecrã, assim como não se presenciava uma dança tão orgânica desde que Luchino Visconti respirava. Sim, é um filme com o seu quê de saudosismo pelo já feito, mas bem empregue neste retrato romantizado de uma guerra sem fim. Até porque finais felizes não existem. Estamos simplesmente “condenamos” a não vivê-los.

(texto originalmente escrito em 12 de maio de 2018)