Sexta-feira, 29 Março

«Unsane» (Distúrbio) por André Gonçalves

Após ter anunciado a retirada do cinema e de quatro anos sem grandes sinais de vida, Steven Soderbergh voltou ao seu ativo tipicamente prolífico e multifacetado, na qualidade de cineasta “decatlonista”, i.e. um homem que acaba por saber um pouco dos vários ofícios e artifícios desta arte, da montagem e fotografia à escrita de argumentos. 

Para provar que não tem medo de novos desafios, o realizador de Sexo, Mentiras e Vídeo regressa à câmara mas desta feita escolhe um objeto que qualquer um consegue arranjar numa loja de eletrónica: um iPhone. A ideia não é nova, e o realizador não aterrou de repente nesta nova moda: estamos afinal a falar de um dos grandes responsáveis para que a transição para o digital se tenha dado de forma tão fluída. Há um par de anos, um filme conquistava Sundance: Tangerine – um acontecimento tão palpável que a Academia já o imortalizou, colocando um dos iPhones que Sean Baker utilizou no Museu da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas. Há 30 anos atrás, era Sexo, Mentiras e Video a revolucionar cineastas contemporâneos e futuros. 

Soderbergh usa o iPhone não como nova brincadeira de um miúdo de 7 anos, mas para enaltecer a claustrofobia da protagonista. Essa é a primeira vitória de Unsane, um thriller que joga inclusivé com o seu aspecto, colando-se estilisticamente a títulos cheesy/série B da década de 70 ou 80 (o plano final sendo a piscadela mais óbvia).

Não é o que aparenta ser que incomoda ultimamente aqui, mas sim o que se decide e quando se decide de um ponto de vista de storytelling, sobretudo face ao trailer entretanto divulgado. A certo ponto, a veia paranóica muito evidenciada na promoção esbate-se rapidamente; sabemos com o que contar. Se por um lado, este abrir do jogo não deixa de esconder uma atitude punk e antisistema, que, observando a carreira do cineasta, temos provas mais que suficientes da sua existência, por outro, acaba por retirar grande parte do suspense que a obra aparentava possuir, sobretudo quando esta envereda por um terceiro ato a ir mais de encontro à tal imagem de thriller básico de outros tempos… 

Sendo Soderbergh, ainda assim, um autor mais consistente do que se lhe é dado crédito, mantém-se aqui uma mensagem política forte quando se discute porque é que  Sawyer (Claire Foy, a mostrar que o seu talento é também visível em qualquer ecrã) se mantém assim retida – o dinheiro sempre a ser um motif, mais ou menos silencioso, na sua obra. E claro, é impossível não mencionar o facto deste ser o primeiro filme a ser rodado com a consciência do movimento #MeToo, sobretudo quando o assédio é a temática central aqui. 

Perante o que vai conseguindo fazer e o que tem para dizer, sobretudo ao longo da primeira metade, e pela entrega total da sua atriz principal, Unsane merece uma espreitadela nos videoclubes caseiros. E perante tanto lixo em material mais caro, custa a crer que não se tenha dado uma oportunidade a este filme que é no mínimo prova que podemos sim começar a pensar nos smartphones como meios completamente válidos para contar histórias.  

 

André Gonçalves

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