Sexta-feira, 19 Abril

«Nada a Perder» por Jorge Pereira

Depois de pregar nas ruas, de adquirir rádios, fundar jornais e assumir o comando de uma estação de televisão, a palavra do bispo Edir Macedo da Igreja Universal do Reino de Deus chega aos cinemas na forma de um uma cinebiografia financiada pela própria instituição com cerca de 40 milhões de reais (10 milhões de euros) para dois filmes – executados simultaneamente – sobre a sua vida.

Tal como seria de esperar, este Nada a Perder é – acima de tudo – um panfleto de propaganda a um homem que assume ter sentido o “chamado” de Deus e que decidiu a certo ponto afastar-se da sua vida quotidiana e trabalho (na Loteria) para ser pastor, isto apesar de todas as contrariedades. Basta ver o subtítulo deste filme, onde temos uma frase quase a puxar a Alexandre Dumas a dar o mote neste conto do “Underdog” que triunfa “contra todos, por todos”.

O filme começa com a detenção do bispo nos anos 90, voltando depois atrás para contar a sua vida desde a infância, dura, onde era vítima de bullying pelos outros meninos devido a um problema nas mãos (mãozinhas era a sua alcunha). É aqui também que conhecemos, já na adolescência, a sua entrada na “vida religiosa”, em particular como companhia da sua irmã asmática que sentia melhoras quando ouvia um pastor na rádio. Acentuam-se aqui, também, as suas dúvidas existenciais quanto a Deus e a forma como a religião tradicional lida com os desfavorecidos, levando a uma cisão e afastamento dele delas, logo depois dele abdicar de uma namorada para perseguir o “seu chamado”, especialmente por esta não o querer acompanhar na sua vida devota.

O resto é o que se sabe. De pregar numa antiga casa mortuária abandonada até encher dois estádios de futebol (Maracanã e Maracanãzinho), suplantando mesmo o número de fiéis que o papa na época juntou na cidade de Natal, foi um passo.

Em termos de estrutura narrativa, o filme nunca larga o seu carácter bíblico e épico, passando pelo típico filme infanto-juvenil, pelo coming of age de um rags to riches, até chegar a uma espécie de thriller político de “Mecanismo” organizado por Brasília em concluo com Igreja Católica para acabar com a Igreja Universal e com a influência do pastor na sociedade brasileira. Tudo isto em nenhum momento é tratado de forma bilateral, ou seja, tudo o que nos aparece em cena é o ponto de vista de um homem cujas decisões e ideias são sempre o trabalho ou desejo de Deus. Se ele diz ou faz, foi Deus que assim quis – ele apenas reflete o que está na bíblia e salva as pessoas através da fé, naquilo que podemos dizer que funciona como o substituto divino de um trabalho que caberia à psicologia (ele mesmo diz isso no seu primeiro discurso num coreto).

Nestas viagens narrativas e cinematográficas, o filme não deslumbra nem tampouco sai da esfera cliché propagandista. O realizador Alexandre Avancini consegue entregar alguns momentos de Cinema, não sendo assim uma obra desesperadamente telenovelesca ou um telefilme no grande ecrã. Há um cuidado com os planos (curiosamente quando o bispo está com as mulheres da sua vida), mas também diversos excessos e lugares demasiado comuns do género.

Veja-se o caso da banda-sonora, profundamente excessiva e sempre em segunda linha, servindo como legenda a quando devemos estar tristes, contentes ou simplesmente entusiasmados. Tudo desnecessário num filme que com mais qualidade saberia usar esse artefacto como acompanhamento das imagens e textos sem impor estados de alma. A questão é que os próprios textos são também muito superficiais, as sequências de vida funcionam como sketches óbvios de resoluções, não ajudando ainda algumas interpretações e momentos que tornam alguns eventos em momentos inadvertidamente cómicos. Pense-se no momento em que após um pedido de casamento, o bispo muda de atitudes com a futura esposa, a qual começa a ter dúvidas sobre a boda, resolvidas de forma apressada numa conversa de minutos à porta de um prédio. Do pedido às dúvidas, passando pela resolução, estamos a falar de 5 meros minutos, que refletem um tratamento dos momentos chave da sua vida na forma de tópicos de um powerpoint

No mais, e apesar de ser uma obra sobre o seu próprio umbigo, o projeto tem algum interesse para perceber certos momentos da história do próprio Brasil e explicar porque tem existido uma crescente procura de lugares políticos por parte dos evangélicos. Veja-se como a troca monetária imposta por Collor de Melo nos anos 90 salvou a Igreja Universal e contribuiu para a sua expansão via espaço da TV.

Fica a esperança de um dia ver um filme sobre a mesma personagem sem a sua visão embelezada, estóica e quase ausente de falhas (já que tudo o que ele fazia, foi Deus que assim quis). Mas pensando bem, será possível fazer uma obra realmente objetiva sobre ele? Dúvido, dados os amores e ódios que esta personagem originou pelo seu caminho…


Jorge Pereira

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