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«You Were Never Really Here» (Nunca Estiveste Aqui) por Jorge Pereira

Os pesadelos e os sonhos convivem lado a lado nos universos de Lynne Ramsay, espaços onde o trauma e a angústia surgem vincados desde os tempos de Ratcatcher (1999), passando pelo muito subvalorizado A Viagem de Morvern Callar (2003), para não falar de Temos de Falar Sobre Kevin (2011).

E esses traumas e essa angústia são o que não faltam a Joe, um Joaquin Phoenix que ao contrário de um dos filmes mais marcantes da sua carreira (I’m Still Here), “It’s not really there” ou “You Were Never Really Here“.

Ao assumir de forma sulfurosa o papel de um veterano de guerra traumatizado com a infância e com stress pós traumático, que vive com a sua mãe demente (numa dolorosa personificação por parte de Judith Roberts), Phoenix demonstra a sua capacidade expressiva acima da média mesmo quando não tem absolutamente nada para dizer. Sim, neste conto sobre alguém que ganha a vida (ou sente-se vivo) a tentar encontrar raparigas desaparecidas, há tiques do caminhar pelas sombras de Alain Delon no O Ofício de Matar de Melville, ou de DeNiro em Taxi Driver (o “God’s lonely man”) e também a loucura no olhar (espelho da alma) quando de martelo na mão caminha em busca de predadores transformados em presas (à la Choi Min Sik em Oldboy).

Porém, o ator que ainda recentemente vimos nas salas como Jesus (outro messias noutro registo) carimba a sua representação com um elevado grau de autenticidade, exprimindo em todo o seu esplendor o desespero, ansiedade, inquietude, desconsolo, agonia e fragilidade que a sua personagem hipnótica detém (Samantha Morton também o conseguiu em Morvern Callar).

E mesmo com estas referências claras na construção do seu Joe, paredes meias com Phoenix, Ramsay não pega apenas em imagens esparsas do cinema para reciclar conceitos, sensações e emoções. Ao invés, ela foca toda a sua atenção na psicopatia de Joe e na forma como ele lida com a agressividade, um resultado do trauma e como a descarrega através da violência impiedosa num ato tão libertador como de (falsa) redenção.

Numa entrevista, Ramsey descreveu que “ser cineasta é como ser psicanalista“. No seu caso, é curioso verificar como dá sempre mais destaque à violência contra si mesmo que contra os outros. Ela mesmo através dos planos parece estar pouco interessada no grafismo das situações para além do poder da sugestão, optando a maioria das vezes por apresentar essas sequências de interação entre caçador e caçado através de uma agressividade e violência em contracampo, longe do olhar direto (sob um espelho, um sistema de vigilância, um tiro na entrada de uma divisão), invertendo esse desígnio nos momentos em que este homem se agride a si mesmo, como as sequências iniciais e finais bem o demonstram.

Na verdade, e tal como outros exemplos da sua cinematografia, Ramsay constrói um trabalho elíptico que se vai compondo passo a passo, optando pela forma como Joe se consome a si mesmo, variando entre o delírio onírico e a realidade crua uma sem número de vezes de forma visceral. E tudo com um toque profundamente sensorial e imagético, uma atitude clara de regressão aos seus primórdios ligados à pintura e fotografia

Tudo isto reflete-se tremendamente no seu Cinema, transformando Ramsay numa das realizadoras mais interessantes dos nossos tempos sem necessidade ou vontade de glorificar atos e a violência. Se Von Trier levou a Cannes a “arte de matar” e Tarantino e Refn apresentam constantemente a “arte da violência”, Ramsay prefere antes a “arte da psique”, do tentar entrar nas mentes das suas personagens profundamentes marcadas pelo tempo e por atos que as transformam em algo que não elas mesmo.


Jorge Pereira