Terça-feira, 19 Março

«Fahrenheit 451» por Jorge Pereira

Acaba por ser curioso que um livro que explora as consequências da televisão e dos media na educação, conhecimento e na literatura seja adaptado por um gigante da TV, a HBO, que pegou no clássico de Ray Bradbury, Fahrenheit 451, e entregou a sua direção, argumento e produção a Ramin Bahrani (99 Casas). Este adaptou o conceito aos tempos modernos, demasiado preocupado em alcançar os fãs de distopias que despertaram uma nova realidade na indústria do entretenimento com o aparecimento de Hunger Games, logo seguido de Divergente, e o sucesso na TV de produtos como The Handmaid’s Tale.

O resultado, mais do que pobre, é profundamente irrelevante, existindo ainda outra imagética contemporânea derivativa, como uma Cleveland numa realidade paralela à la Black Mirror e um visual urbano à Blade Runner, que mais do que um piscar de olhos aos fãs de Sci-fi, funciona como um exemplo claro de ausência de inovação ou uma personalidade distinta por aqui.

Blade Runner Vs Fahrenheit 451 (2018)

Sim, a obra de Bradbury – dos anos 50 – era bastante visionária, enquanto esta adaptação moderna é uma mera reciclagem sem chama ou sentido avant garde (troca-se a TV como perigo pelos média sociais). Repare-se nos pequenos detalhes, como uma espécie de Siri/Alexa em modo Big Brother (Yuxie) a interagir com os nossos protagonistas, ou o sistema operativo/internet feed a que todos parecem ligados, o The Nine, visto e revisto com outros nomes em inúmeras obras contemporâneas, do cinema à TV, sem nunca esquecer a literatura.


A interação aos live feeds dos eventos punitivos

Michael B. Jordan, Michael Shannon e Sofia Boutella são o trio por onde se coze esta história de bombeiros que em vez de apagar fogos, criam-nos, a qual já tinha sido adaptada ao cinema em 1966 por François Truffaut. Os tempos modernos exigem algumas reinterpretações e ajustes do conceito, com os livros (físicos e digitais) a serem proibidos, havendo apenas algumas obras minimamente autorizadas, mas transformadas em emojis (A Bíblia, Moby Dick). Tudo o resto é interdito, mesmo as opiniões próprias são vistas como antissociais e hedonistas, e o pensamento crítico é suprimido. É neste mundo que vive Guy Montag, um “bombeiro” que tem uma crise de consciência após ver uma idosa a deixar-se morrer como protesto à queima dos seus livros.


Fahrenheit 451: versão 1966 Vs versão 2018

O trio de atores entrega prestações tão cansadas como a visão de Bahrani, com Jordan não muito diferente ao que fez em Creed ou até Black Panther (especialmente nas explosões emocionais), e Shannon a precisar urgentemente abandonar este género de papéis, pois essa sua personagem soa a repetitiva (mesmo quando mostra ambiguidade quando está sozinho), especialmente depois do que o vimos fazer em A Forma da Água.

Para mais, a forma como Bahrani filma tudo ecoa entre o videoclipe e os momentos de incidência dos atores (que exigiam maior ênfase dramática), estando estes agarrados a um texto mais interessado em lançar frases feitas do que em criar verdadeiras personalidades distintas que saiam do já visto.

Por tal, Fahrenheit 451 acaba por ser um desperdício, embora as suas limitações de produto televisivo de orçamento contido estejam visíveis. Mas nos tempos de Netflix e Game of Thrones (da HBO), isso nunca pode ser desculpa, mesmo para um filme made for TV.


Jorge Pereira

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